quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A Irlanda inspira, e o Tuatha de Danann exalta a importância da rebeldia e da resistência

 Marcelo Moreira

São poucos os sons, e seus autores, que conseguem capturar a essência de um povo com alguns acordes. O guitarrista Gary Moore, em seu ótimo álbum "After the War", teve mais um lampejo de genialidade ao resumir a dor, a melancolia e a esperança de sua maltratada Irlanda nas duas belíssimas partes de "Dunluce". A dor de um povo concentrada em uma bela peça instrumental.

Anos depois, o inglês Jeff Beck faria a sua própria homenagem à ilha vizinha com a estonteante e definitiva "Declan", que cairia muito bem como um hino daquela terra.

E o milenar som celta de origem gaélica é tão poderoso, toca tão fundo na alma, que enfeitiçou músicos ensandecidos brasileiros, a mais de 10 mil quilômetros de distância. Se os metaleiros podem se sentir como escandinavos nas gélidas florestas da Noruega e da Finlândia, porque não termos bardos mineiros trocando bodhran em plena Varginha?

O grupo Tuatha de Danann surpreendeu o rock nacional ao assumir sua "alma" irlandesa em meados dos naos 90. A surpresa não foi apenas por tocar música gaélica, mas por fazer tão bem e de forma tão emocionante, a ponto de virar referência internacional.

"In Nomine Éireann" é o novo trabalho dos mineiros de Varginha, uma celebração da música irlandesa e uma homenagem à resistência e à resiliência de um povo colonizado e escravizado por mais de 700 anos pelos vizinhos ingleses, galeses e escoceses.


"É um trabalho que nos orgulha de forma completa, já que significa a continuidade de nossos trabalhos e também uma forma de resistência diante de tantos obstáculos e tantos problemas entre 2019 e 2020. Era para ser um álbum de versões, mas nos inspirou tanto que compusemos duas autorais e as incluímos", diz Bruno Maia, vocalista, guitarrista, flautista e hábil em vários instrumentos de sopro, corda e percussão de origem gaélica.

Maia é um expert no assunto. Passou um tempo em Dublin, a capital irlandesa, e percorreu a pequena ilha europeia que transpira história, mitologia e magia. Fez tantas amizades por lá que era óbvio que muitos dos "broders" apareceriam nos clipes e nas músicas do CD.

Entre canções tradicionais e folclóricas, "In Nomine Éireann" ganhou uma cara rebelde, ainda que haja a predominância de um clima mais festivo, um dos ramos da música irlandesa. Tem uma cara mais rebelde, ressaltando o caráter de resistência do povo irlandês.

Sendo assim, não há como não relacionar a homenagem ao espírito libertário e combativo do novo trabalho com os tempos difíceis da sociedade brasileira engalfinhada na guerra contra a pandemia de covid-19 e o nefasto governo federal de nítida inspiração fascista que emperra tudo.

"Saiu um trabalho com uma cara rebelde mesmo, e dá para ver isso em músicas como 'Guns and Pikes', com toda sua ironia, sarcasmo e provocação. Algumas canções são verdadeiras declarações de intenções", afirma o músico.

A reverência à Irlanda ganha tom épico quando um dos convidados é John Doyle, irlandês mestre em instrumentos de corda que acrescenta uma cor definitiva aos temas que resgatam com fidelidade o mundo celta. 

O mesmo pode ser dito a gente que mergulha no instrumental gaélico, como o irlandês Kane O’Rourke nos violinos e Alex Navar na uilleann pipes. Dos brasileiros, como não se emocionar com Rafael Delfino no bodhran?

As canções antecipadas como singles praticamente entregaram o ouro, mas essa era a intenção. "Guns and Pikes" é densa, veloz, pesada e mostra a verdadeira celebração celta da resistência ao ocupante e a tenacidade em driblar os obstáculos. O Tuatha de Danann soube captar a aura de malandragem que letra e música exalam - em verdadeira consonância com o espírito brasileiro.

"Molly Maguires" é mais respeitosa com a tradicional irlandesa, mas não menos virulenta quando se trata de exaltar as qualidades gaélicas tão necessárias ao enfrentamento do colonizador britânico. Keith Fay, da banda irlandesa de metal extremo Cruachan, faz uma participação extraordinária nos vocais - O'Rourke brilha no violino incendiário.

Um brinde à liberdade e à rebeldia com o Tuatha de Danann (FOTO: DIVULGAÇÃO)

São as duas primeiras faixas que entram de sola após a instrumental "Nick Gwerck's Jigs", uma verdadeira declaração de intenções - e de guerra - fazendo menção a um irlandês que participou da Inconfidência Mineira, no fim do século XVIII.

"The Calling" quebra um pouco o clima triunfante e de celebração e investe em um clima mais reflexivo. A banda acerta na escalação da cantora Manu Saggioro e obtém uma aura mais melancólica, o que não retira a força da canção.

"The Wind That Shakes the Barley" é uma espécie de retomada do conceito do álbum, digamos assim, onde outra cantora participa e dá um molho mais do que especial. Daísa Munhoz alia beleza e sofisticação para embalar uma história tradicional e acrescentar certa dramaticidade à canção.

"The Dream One Dreamt" seria um bom encerramento com sua mensagem de esperança e brado de luta - os banjos e violões aqui têm arranjos tão bem feitos e contundentes que certamente invejaria qualquer combo irlandês da gema. No entanto, como bônus já incorporado ao trabalho, a banda decidiu fazer uma ode ao rei - por que não?

"King" é uma daquelas canções que nitidamente precisavam ser gestadas em meio a um ambiente turbulento e estimulante. Pode fugir um pouco ao conceito de In Nomine Éireann", mas condiz muito com o momento em que vivemos neste final de 2020. 

O conteúdo é um pouco mais político e engajado, mas serve perfeitamente para a aquilo que se presta: uma celebração diante da liberdade e da necessidade de resistir - uma música muito feliz em que Maia tem como parceiro de composição Tadeu Salgado. É forte, pesada e com um trabalho de guitarras mais intrincado, reforçando a "gana" com que foi composta e arranjada.

Típico trabalho em progressão, esse CD foi crescendo durante o período de gravação em pandemia e ficou de tal forma encorpado que ganhou, à força, uma posição predominante dentro da discografia do grupo e dos lançamentos de rock neste ano.

Seria apenas um disco de versões de músicas tradicionais de um país distante? "King" talvez desmistifique essa interpretação.

Com conteúdo bem definido e um conceito delineado, "In Éireann Nomine" se transformou em um manifesto poderoso de rock de qualidade e como metáfora histórica de um tempo em que o passado nem um pouco glorioso - em quase todos os sentidos - passa a ser reverenciado, louvado e ansiado para ser resgatado.

A série de porradas em forma de música recheada de bodhran, uillean pipes e banjos de todos os tipos é um alerta, sutil ou não, de que o mundo avançou muito mais do que esses nostálgicos perceberam.

O Levante da Páscoa de 1916, que colocou os fundamentos da Irlanda moderna na berlinda - e, de certa forma, estabeleceu os padrões de resistência de povos oprimidos no século XX - deve ser lembrado a todo momento para quem se aventura no inóspito, mas fascinante, terreno da música celta: não basta reproduzir o timbre do banjo ou do bouzuki; é imperativo sentir a densidade e a relevância daquilo que está sendo tocado, quase que da mesma forma que Gary Moore fez em "Dunluce", a verdadeira declaração de intenções da música irlandesa.

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