Marcelo Moreira
A doce Cris quase entrou em um bar na semana anterior ao Natal. Passava de carro em uma rua movimentada da zona norte de São Paulo e estava aguada de vontade de tomar um mojito e uma cerveja Baden Baden tipo weiss.
Faz dez meses que ela entrou pela última vez em um boteco da mesma zona norte onde mora, com o marido dono de micro empresa de informática e a pequena Bibi, a filha de três anos. Ela merecia ao menos tomar um chope bem geladinho.
Engoliu seco a vontade e tomou água do cantil que leva na bolsa. Seguiu resignada pra casa depois de um plantão de 17 horas consecutivas em dois hospitais, um deles público. Tinha de dar o exemplo e ficar longe do bar lotado de gente disseminando o vírus.
"Não me contive e tive de parar em uma ruela para chorar bastante. Faço isso com frequência diante do trânsito pesado e lento. Quando vejo algo absurdo, logo lembro da última pessoa que morreu e desabo. Preciso chorar, encostada em qualquer canto, estacionada em qualquer lugar. Só assim reúno forças pra chegar em casa", diz a médica intensivista, ou especializada em tratamentos de pacientes em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva).
Não importa quantas vidas ela ajudou a salvar na semana. Cada morte por covid-19 é uma facada nas costas, uma sensação de impotência e de fracasso.
"Quando vejo bares lotados, festas de todos os tipos, praias abarrotadas, eu percebo que é uma derrota, daquelas diárias. Não é nem o caso de enxugar gelo, pois uma hora o gelo seca ou derrete. Uma hora acaba. É um 7 a 1 todos os dias, para não falar da extrema falta de respeito com quem trabalha exaustivamente para que menos gente morra", continua.
De todas as suas derrotas diárias, de todos os tipos, em pelo menos uma delas consegue se livrar: a de ter de avisar, a quem quer que seja, que não pode receber mais pacientes por falta de leitos na UTI. "Não sei se suportaria ver a cara de desespero de parentes de quem tem de ir para a UTI imediatamente."
No dia em que conversamos rapidamente, ela me agradeceu por apresentar a obra de Edu Gomes e Adriano Grineberg, "Concerto de Cura", uma série de canções instrumentais e mantras indianos que, em muitos casos, serve como "antídoto terapêutico" para a fase tenebrosa em que vivemos.
Cris é amiga de alguns amigos. Apaixonada por literatura brasileira, artes plástica da era do modernismo e por Van Halen, Def Leppard e Bon Jovi, é capaz de passar a noite discutindo política, economia, rock e direitos das mulheres. Fala com clareza, simplicidade e explica sintomas e doenças com uma facilidade irritante. Resumindo, é uma personalidade fascinante e sensível.
"Tem sindo um ano pesadíssimo. Não bastassem as mortes e as restrições que o vírus nos impôs, ainda temos de aguentar um presidente racista, egoísta, incompetente, negacionista e irresponsável. Não dá nem mesmo para ir ao estádio xingar o juiz, o nosso time [O São Paulo, no caso dela], o Bolsonada e o vírus. Não dá para ir a um show de rock aplaudir um cara como Roger Waters. Não dá nem para tomar um chope ruim em qualquer bar ruim. "O que nos resta?"
Cris e o marido se identificaram com as músicas que Gomes e Grineberg criaram para meditação e que são também aplicadas em aulas variadas de ioga e outras artes orientais. Foi lendo o Combate Rock que ficou sabendo da "novidade".
Bem informada e culta, é daquelas que leram Nietzsche, o filósofo que cravou que "a vida sem música seria um erro", no cursinho e durante a faculdade. Lê filosofia com frequência e busca sentido em cada ato de sua vida e na dos outros.
E continua buscando sentindo nas aglomerações suicidas, homicidas e genocidas que andam ocorrendo desde sempre, em uma insistente negação de que ainda existe pandemia - e que estamos vivendo um recrudescimento mais violento dos ataques do vírus.
"A gente vê jogador de futebol [Neymar] fazendo festa de cinco disa em mansão, a gente vê pancadão todo dia nas periferias do país, a gente vê empresário esbravejando contra medidas restritivas necessárias... E eu me pergunto: qual foi a parte do 'não vai ter UTI e hospital pra todo mundo' que essa gente estúpida não entendeu?"
Mas e a economia? Ela não pode parar, não é? O Brasil e o mundo vão quebrar, as pessoas precisam comer e trabalhar e precisam se aglomerar no transporte público...
"Cada vez que ouço que a 'economia não pode parar' me dá vontade de ir correndo para um canto e escutar o 'Concerto da Cura' para não explodir. Morto não costuma comprar. Ou seja, então não adianta abrir loja e aglomerar se mais gente vai morrer e menos gente vai comprar. Quando a gente vê dúzias de mortes por covid, a última coisa em que devemos pensar é na economia. Aglomeração nos ônibus e metrôs? Isso é necessidade, infelizmente, por conta de um capitalismo predatório. Ficar em bar cheio, praia cheia e festa irresponsável cheia é opção e escolha."
Parece tão simples, mas ao mesmo tempo tão diante da realidade...
Cris decidiu não ler mais nada e ouvir mais coisa alguma sobre vacina. Já leu e ouviu o suficiente. Sabe que a irresponsabilidade do governo Bolsonada e a politização incentivada por um insano governador de São Paulo corroem a credibilidade de datas e promessas.
Fã da microbiologista Natália Pasternak, uma cientista brasileira que virou estrela, merecidamente, ao lado de Margarete Dalcolmo, da Fiocruz, por falar clara e diretamente sobre ciência e covid, a médica da zona norte paulistana não se dá ao direito de relaxar e de ter folga. Como, se as pessoas continuam morrendo às centenas diariamente no país?
"Não vai ter Natal, não vai ter réveillon. Não vai ter a minha cerveja Baden Baden e não poder escutar 'Runnin' with the Devil" no talo para homenagear Eddie Van Halen [guitarrista do Van Halen morto em outubro]. Mal consigo escutar o 'Concerto de Cura' no meu celular por minutos em momentos de desânimo e desespero. Mal me lembro que a Bibi precisa de mim em casa. Eu queria apenas um pouco mais de respeito para quem está trabalhando contra a pandemia e que houvesse mais consciência para que não tenhamos superlotação nos hospitais. Mas acho que vou ficar querendo."
O "Concerto de Cura" está se disseminando em parte dos grupos de profissionais da saúde da zona norte de São Paulo. Ajuda a amenizar a solidão e o desespero das mortes em série. Muita gente vibrou quando foi apresentada à série de canções e sons que inspiram a tranquilidade e a serenidade.
O relato de Cris é muito parecido como o de tantos outros que são divulgados/desabafados diariamente, inspirando até uma série diária do "Jornal Nacional", da TV Globo.
O comportamento da maioria do povo brasileiro é reflexo, ou consequência, direta dos tempos tenebrosos em que a sociedade brasileira chafurda desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente e está conduzindo a nação ao precipício.
É uma maioria negacionista que se orgulha da própria ignorância, que tem horror à inteligência e pavor do conhecimento e da informação correta.
Para muita gente, que bom que existe a música e o "Concerto de Cura". Mais nunca, a vida sem música neste momento seria um erro; a vida sem o rock seria inútil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário