terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A 'viola confinada' de Ricardo Vignini se agiganta em 'Cubo'

 Marcelo Moreira

A capa de 'Cubo'

Confinado no cubo. Criando, produzindo, enlouquecendo. As violas ao alcance das mãos, e tudo o que restou fora as boas lembranças em que podia tocar sem restrições. Um mundo longínquo, que está cada vez mais distante. A vida se resume ao cubo.

O violeiro paulistano Ricardo Vignini precisava respirar nestes tempos de pandemia e as suas violas, companheiras inseparáveis, clamavam por mais sons, por mais melodias, por mais tudo. Sufocadas, reivindicavam a luz do dia, ou da noite, dentro ou fora do cubo. E o nerd da viola atendeu aos chamados.

"Cubo" é mais um dos produtos do isolamento social e reflexo direto dos temos de pandemia. É meio amargo, mais denso e mais tenso.

É música com viola caipira, mas é música pesada, que explode nos ouvidos e toma conta do cérebro. É um grito de dor e de desespero, mas com um lugar cativo para algum tipo de esperança. A viola vai vencer e vai voltar.

Workaholic e nerd, Vignini já declarou que trabalhar mais e mais é a solução para artistas que não campeões de venda e de audiência. Quando mais produzir e mais lançar, mais consegue ganhar e empurrar a vida em direção a mais lançamentos.

O novo trabalho é o terceiro de 2020, e o segundo em tempos de pandemia. O anterior, "Sessões Elétricas para Um Novo Tempo", creditado ao Ricardo Vignini Trio, é um registro ao vivo, em estúdio, de temas importantes de sua carreira e alguns inéditos, mas em formato de banda, algo raro em sua carreira solo. No comecinho do ano, saiu "Reviola", onde passeia pela área que lhe é mais confortável, a moda de viola com pitadas de MPB.

Em "Cubo", Vignini dá vazão a uma torrente de emoções e sentimentos cuja característica principal é a diversidade. O cancioneiro instrumental da música de raiz brasileira agora convive com um rock eletrificado pesado, com letra densa e tensa, como "Dharma", que tem vocais, guarânias, boleros e algum blues. É um trabalho diferente, mas não menos instigante.

Com 10 faixas no total, músicas próprias, parcerias, releituras de músicas que não fazem parte do repertório violeiro, mas que soam bem no instrumento, contaram com a participação de 14 músicos -  Francis Rosa, Fernando Nunes, Marcos Suzano, Humberto Zigler, André Rass, Adriana Farias, Adriano Magoo, Carlinhos Ferreira, Felipe Câmara, Álvaro Couto, Kuki Stolarski, Rodrigo Mantovani, Bruno Maia e Beto Scopel.

Ricardo Vignini (FOTO: RITA PAVAN/DIVULGAÇÃO)

O álbum conta com compositores como André Abujamra, Socorro Lira, Zé Ramalho, Charly Garcia, André Geraissati, Woody Mann e Lorenzo Barcelata, compositor mexicano que escreveu a canção "Maria Elena", de 1932, única faixa gravada ao vivo no estúdio uma semana antes das normas de isolamento entrarem em vigor. 

"Maria Elena", gravada no estúdio Space Blues em março de 2020 no Estúdio Space Blues por Alexandre Fontanetti, Felipe Câmara e Addassi Addasi, mixada e masterizado por Brendan Duffy.

Com time afiadíssimo e estrelado de músicos, e uma produção simples e limpa do próprio Vignini, "Cubo" é um raio de sol diante da nebulosidade constante deste ano devastador. 

Sem poder trabalhar nos palcos e excursionar para extravasar toda a imensa produção dos últimos 20 meses - simplesmente sete álbuns lançados -, o violeiro tenta se reinventar e explorar novos mundos. 

O blues aparece na abertura do trabalho, "Dharma", com violas eletrificadas e pesadas servindo de fundo perfeito para a interpretação dramática de Francis Rosa em letra que mistura protesto e esperança. O baixo de Rodrigo Mantovani e a bateria de Humberto Ziegler engrandecem a sonoridade blueseira.

Uma canção de André Geraissati dá uma pequena amenizada no clima. "Fazenda 83", com sua profusão de violas, engana o ouvinte ao "indicar" um retorno a águas mais conhecidas da música instrumental brasileira típica, mas em seguida deságua na intrigante "Cada Um No Seu Quadrado", em que um instrumental ousado se junta a um vocal inusitado que remete ao hip hop e outras manifestações urbanas.

A já citada "Maria Elena" traz a latinidade para o CD e é uma novidade na carreira do violeiro, que aqui dá uma aula nas violas e violões para recriar um clima mexicano dos mais intensos e emocionantes, servindo de cama fantástica para o vocal austero e intenso de Adriana Farias, em espanhol.

As belas "São Thomé das Letras", de Vignini, e "Admirável Gado Novo", de Zé Ramalho, retomam algumas gemas do passado, oscilando bem entre a música de raiz, com violas extremas, e a intensidade necessária que as músicas pedem ara passar o recado.

"Cubo", a faixa-título, é um encerramento apropriado que teve o brilho dos vocais de Felipe Câmara e a bateria precisa de Humberto Ziegler. É quase um rock rural, um pouco mais clássica do que "Dharma", mas bem cadenciado e com um vocal emotivo. O tom ácido reforça a crítica, mas também evidencia um certo otimismo cauteloso diante do que estamos passando.

Ricardo Vignini é reconhecidamente um mestre no seu instrumento e uma referência internacional em música instrumental, principalmente a brasileira. Com um currículo impressionante, ainda se considera um artista underground e nunca recusa trabalho. 

A faceta de matuto moderno (nome da banda de rock rural da qual faz parte) e seu jeito acaipirado da Mooca e do Brás escondem um dos maios respeitados estudiosos da música deste país. O conjunto de sua obra é a maior prova da qualidade de seu trabalho.

O novo álbum é uma marca em sua carreira por conta da ousadia e pela coragem de enveredar por caminhos mais ásperos e cheios de solavancos. 

Com mais de 25 anos de carreira, ele pode se dar ao luxo de escapar das armadilhas do conforto da música brasileira de raiz, onde reina soberano, e das versões para viola de clássicos do rock, onde tem um sucesso nem tão inesperado com o Moda de Rock, em que faz dupla com o parceiro violeiro Zé Helder, outro nome importante da música instrumental brasileira e companheiro no Matuto Moderno.

"Cubo" é um álbum bem interessante de ouvir, mas diferente na discografia do violeiro. É desigual, mas não irregular. Fruto de uma temporada insana de inspiração, regada a confinamento e distância absoluta - e necessária - dos palcos, é uma obra audaciosa e, a sua maneira, contundente. Vai incomodar por conta de certa aspereza, mas Vignini  não se preocupou com isso. Ele tinha necessidade de passar os seus recados e deixou muito claro que suas violas são muito poderosas.

Um comentário:

  1. Marcelo Moreira, amei, amei e amei!!! Fecho o ano com chave de ouro, depois de um período sabático. Super obrigada!!!!

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