domingo, 6 de dezembro de 2020

Efeito Boulos: ocupação de imóveis abandonados é um ato de cidadania e inclusão

 Marcelo Moreira

A vida de Guilherme Boulos virou do avesso na campanha presidencial de 2018, quando encabeçou a chapa do PSOL. De coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) em São Paulo, e depois do Brasil, foi imediatamente alçado à condição de radical extremista número 1. Comunista invasor de propriedades foi o xingamento mais leve que ouviu.

Ele perdeu. Mas, de certa forma, esse pesadelo voltou com a a campanha a prefeito de São Paulo, quando foi para o segundo turno e perdeu para um tucano emplumado e engomado que disfarça seu direitismo extremado. 

De novo Boulos foi caracterizado/caricaturizado como aquele que vai invadir a sua casa e tomar seu carro popular 2010 que ainda está sendo pago no carnê.

Bastam cinco minutos de conversa para que o agora político e principal nome da esquerda paulista se mostre afável e educado, mas contundente e nem informado. Só perde a paciência quando lhe imputam feitos que não são seus, e sim de rivais locais na disputa por imóveis vazios e abandonados.

Casa Amarela, na rua da Consolação (FOTO: DIVULGAÇÃO)


Ninguém sabe, ou se importou em saber, que o grave problema da falta de moradias em São Paulo oculta uma disputa acirrada pelo controle de ocupações e invasões de imóveis, quase todos públicos. A pulverização é tanta que o MTST deixou de ser a principal organização, ou a mais numerosa, embora seja a que tem maior prestígio político e credibilidade.

A rivalidade entre os movimentos é grande, pesada e repleta de lances desagradáveis, que envolvem gangsterismo, brigas de todos os tipos e crimes, em algumas ocasiões. 

O prédio que caiu no Largo do Paisandu, em 2018, no centro de São Paulo, é o retrato mais asqueroso dessa disputa pelo controle da miséria e - sua locupletação por oportunistas. Os responsáveis pela ocupação sumiram e não foram identificados.

Entretanto, mesmo não pertencendo ao mesmo grupo de influência, Boulos é referência na luta pelos direitos à moradia e humanos de uma população esquecida e desvalida. E três dessas ocupações se destacam na paisagem urbana paulistana como modelos de ocupação autossustentável e de gestão de áreas abandonadas.

A Ocupação 9 de Julho, pertinho da rua Augusta e da Martins Fontes, no centro de São Paulo, é uma comunidade organizada há quase 20 anos com um histórico de luta pelos direitos da população pobre e é exemplo atuação comunitária.

Justamente por ser modelo, seus gestores e moradores acabam servindo de consultores para empreendimentos semelhantes, além de contar com suporte de intelectuais e profissionais de esquerda e envolvidos com entidades que trabalham, em várias frentes, para reduzir o déficit habitacional paulistano e as desigualdades. 

Entretanto, tanta fama acaba atraindo as atenções da "oposição" e dos agentes da lei e seus líderes convivem com pressões e chances reais de prisão.

Na 9 de Julho, seus gestores reforçam que não veem Boulos ou outros líderes comunitários da defesa da moradia como rivais, mas sim como integrantes de uma mesma frente. Tanto que o candidato derrotado do PSOL é visto ali como referência.

É inspirador observar a maneira fraterna e o trabalho comunitário em prol da coletividade. Quase não se vê dinheiro por ali, seja pela falta, seja pelo simples fato de que as pessoas aprenderam a se virar de todas as formas.

Evento cultural na Ocupação 9 de Julho (FOTO: DIVULGAÇÃO/REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

Como local de referência, acaba atraindo muita curiosidade e visitas de especialistas estrangeiros de várias áreas, bem como uma miríade de artistas independentes em busca de suporte e oportunidades. Guardadas as devidas proporções, lembra um pouco Christiania, o enclave hippie de Copenhague (Dinamarca) que ainda hoje mantém algumas características da vida hippie que lhe deu fama nos anos 70 e 80.

A ocupação 9 de Julho, recuperado pela última vez em 2016 pelo MTSC (Movimento dos Sem Teto do Centro), é ocupado por cerca de 130 famílias, mais de 500 pessoas, distribuídas em 14 andares.  

Na biblioteca que também serve de sala de aula para crianças e jovens carentes e da própria ocupação, um aparelho de CD tocava "Exile on Main Street", dos Rolling Stones. "É o melhor disco deles, Transpira paixão e confiança", bradou uma gauchinha de 19 anos à época, típica moça engajada em serviços sociais que largou uma vida dura de classe média baixa e a faculdade de assistência social para viver na prática o ideal libertário e igualitário. Identificou-se apenas como Paula, feliz da vida com seus óculos de lentes grossas cantando a veemente canção "Soul Survivor".

"Algumas pessoas vêm para cá e mergulham de cabeça em nossa vida, mas às vezes não conseguem deixar 'aspectos burgueses' para trás", debochou um jovem barbudo alto e louro, deixando claro que prefere Chico Buarque e Raul Seixas a qualquer estrangeirismo. Paulista do interior, era um dos coordenadores do movimento que dá suporte às ocupações do movimento. Vestia-se como se estivesse no diretório acadêmico de alguma faculdade da USP dos anos 70.

O dia a dia é difícil, e não festivo como aos finais de semana. Mas ainda assim é um tipo de vida inimaginável bem no coração da megalópole assustadora e traiçoeira, uma máquina de moer gente e sonhos.

A um quilômetro dali, filiada a outro movimento de apoio os sem teto, está o antigo hotel Cambridge, que já foi um dos mais chiques da cidade e palco de concorridas festas e raves nos anos 90 e 2000. A iniciativa foi tão impactante que virou filme.

Desativado em 2002, foi ocupado na noite de 22 de novembro de 2012 por famílias amparadas pela FLM (Frente de Luta por Moradia) - algumas também tinham vínculos com o MSTC). O edifício sem elevador tem 15 pavimentos e 241 quartos.s das famílias ocupantes são de imigrantes e refugiados vindos de países africados e também do Paraguai e da Bolívia.

Após a ocupação, um mutirão de limpeza removeu 15 toneladas de lixo em caçambas de quase 60 caminhões. A reciclagem não era apenas do lixo, mas também do espaço, que deixava de ser um lugar sem função social para abrigar mais de 170 famílias, cerca de 500 pessoas.

Refugiado africano consulta a biblioteca do hotel Cambridge ocupado (FOTO: PAULO PINTO/FOTOS PÚBLICAS)

Falido pela enésima vez, foi trancado neste século e abandonado por donos e administradores. Não demorou para que se tornasse um dos endereços mais importantes dos sem teto na capital e com uma organização de tal forma competente que chamou a atenção de estudiosos e jornalistas internacionais, assim como a Ocupação 9 de Julho.

Justamente por atrair muita atenção, é alvo constante de ameaças de despejo e de violência por por grupos diversos, mas a resistência ali é forte. 

O rock e o hip hop são os sons predominantes por ali, ou pelo menos eram naquele inverno de 2018. Em vários andares era possível escutar, ainda que sem eletricidade total, bandas ensaiando ou rodas de jovens apenas curtindo um som. Nada de coisa pesada, mas era possível escutar Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Raul Seixas e algum rock new wave dos anos 80.

"O desemprego aqui é muito alto, e nem os 'bicos' estão aparecendo. Tá bem complicado, mas seguimos em frente. Nossos orgulhos são a cozinha comunitária e o nosso sistema, meio improvisado, de ensino que oferecemos para crianças e adultos", afirma uma das coordenadoras do local, que não quis se identificar. 

A luta deles é constante e, naquele momento, era contra uma "liga" de comerciantes da região que fustigava os moradores do Cambridge e que supostamente teriam o apoio de vereadores de direita. O sistema de vigilância e segurança era rígido, mas bastante discreto e não muito ostensivo.

"O que as pessoas precisam entender é que somos gente desesperada e sem trabalho que não pode se dar ao luxo de ver um prédio gigante vazio e deteriorado", diz a coordenadora. "Somos gente comum que nem na favela conseguiu lugar. Estamos deixando de ser invisíveis e mostrando a nossa cara para que o poder público tome uma providência. Queremos a regularização imediata para que tenhamos uma vida normal e sem ameaças."

Ao som de "Alagados", dos Paralamas, ela se mostrava animada com a então campanha presidencial de Boulos. Vai dar visibilidade para a nossa luta e nossas demandas. Ele é inteligente e sabe dos nossos problemas. Tem a vantagem sobre qualquer um do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra) por ser um nome novo e não associado a radicalismos, como a direita sempre tenta fazer."

A Casa Amarela, não muito longe dali, em uma esquina da rua da Consolação, do lado do centro, próximo à sede do TRT (Tribunal Regional do Trabalho), é uma ocupação diferente. 

O seu propósito (no nome oficial é Casa Amarela Quilombo Afroguarany) é estritamente cultural. Ninguém ali recusa uma estadia rápida para descanso, mas tem de ser rápida mesmo. 

Cartaz de divulgação do filme sobre o hotel Cambridge (FOTO: REPRODUÇÃO)

A ideia é servir de centro cultural alternativo para artistas de rua ou sem condições de mostrar seu trabalho em outros lugares, embora a prefeitura esteja querendo retomar o imóvel.

É comum ocorrer todos os dias saraus literários ou ensaios de peças ou monólogos, a grande maioria com viés social, libertário e engajado. "Fazemos arte da resistência e apoiamos iniciativas que privilegiem trabalhos de autores que venham da periferia e que sejam excluídos do 'mercado' cultural", diz Roger SL, artista plástico mineiro, grafiteiro e iluminador.

Ele não se identifica como um administrador do local, mas diz que participa ativamente do colegiado e ajuda no que pode na manutenção do local, que tinha passado por uma pequena reforma na época, mas ainda mantinha muitas de suas suas precariedades de um casarão velho e abandonado por anos.

O som que manda ali é o rap, até por uma questão prática. Com instalações elétricas ainda em "desenvolvimento", a energia ali só suporta uma mesa de som e dois microfones ligados no subsolo. 

"Até gostaríamos de ver bandas de rock, samba e MPB com mais frequência, seja para ensaios, seja para shows. Pretendemos resolver isso o mais rápido possível", prometeu Roger.

Ele me apresenta Rui, um moleque negro de uns 20 anos com uma camisa do Gentle Giant, banda de rock progressivo britânica dos anos 70 e muito cultuada no Brasil.

Morador da Vila Mazzei, na zona norte da cidade, abandonou a faculdade de letras para se dedicar à arte e ao suporte de artistas da ocupação. "A gente carece de tudo aqui. Precisamos de mais gente pra manter a Casa Amarela viva. Estou desempregado agora, trabalhava numa loja no centro, mas mesmo assim eu vinha aqui todo dia para dar uma força. É o que faço hoje."

Por que abandonou a faculdade? "Era particular, em Guarulhos, longe demais e pesada demais para o meu bolso. E errei na escolha, não fazia sentido continuar. Quero mesmo é ser artista e fazer cursos no Senac."

E onde entra o Gentle Giant nessa história? "Sempre fui chegado ao samba, mas um tio da minha mãe é professor de música e trabalhou em gravadora lá atrás. Um dia ele me mostrou a sua imensa coleção de LPs e devorei tudo o que pude, de Roberto Carlos a Deep Purple. Até hoje a casa dele é a minha Disneylândia. E se existe algo mais transgressor e rebelde além do punk, é a música do Gentle Giant. Tenho todos os CDs."

Rui não é uma exceção ali. Pluralidade e diversidade são as palavras de ordem na condução dos trabalhos e da vida na Casa Amarela. É ali que a vida começa para muita gente, que a luz brilha lá no finzinho do corredor para quem não tem nada e vê as forças sumirem lentamente.

Não dá para saber se existe um futuro promissor para esse tipo de iniciativa sempre envolta em ameaças e dificuldades imensas. Mas o que move Rui e Roger e mais uma série de artistas de rua que estavam ensaiando por ali é o simples desejo de manter as portas abertas, pois foram essa ortas que se abriram para que eles pudessem vislumbrar alguma perspectiva.

É esse tipo de gente que respeita e se inspira em Guilherme Boulos, o "invasor radical de propriedades privadas". Infelizmente, é esse tipo de gente ainda alvo de ameaças de todos os tipos na metrópole selvagem que expele pobres e miseráveis e não aceita nenhum tipo de misericórdia ou compaixão. 

No entanto, Boulos, a Casa Amarela, o Cambridge e a 9 de Julho, de forma incisiva, estão por aí insistindo em dar visibilidade aos invisíveis. Fazem questão de que não nos esqueçamos dos sem teto e de que há boas soluções para o problema da moradia em São Paulo.

Falta muita vontade política para começar a discutir essa questão. E ainda bem que Boulos e as ocupações que deram certo estão por aí para nos lembrar de que a luta não tem e jamais terá fim.

"Tem uma música dos Titãs, acho que é 'Miséria', que dois garotos negros ouvem direto aqui, em meio a Racionais MCs, Emicida e Criolo. Eles dizem que a música é importante para que nunca esqueçamos de onde viemos e para onde nunca deveremos voltar. Acho que é esse o espírito da coisa", resume Roger SL.

P.S.: Este texto é uma recuperação de informações por parte do repórter, que revisitou seus blocos de anotação a respeito das visitas que fez aos locais entre 2017 e 2018 por conta de sua atuação na Câmara Municipal de São Paulo. Julgamos pertinente recuperar essas informações diante das insidiosas e nojentas notícias falsas vomitadas por seres com deformação de caráter e com inclinações criminosas a respeito dos sem teto e do ex-candidato a prefeito de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL).

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