quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Em autobiografia, Nuno Mindelis conta a sua aventura blues pelo mundo

 Marcelo Moreira

Um guitarrista andando pelo mundo e passeando pelo blues. E quem imaginava que o músico Nuno Mindelis tinha chegado ao ápice da longa carreira com o maravilhoso álbum "Angola Blues", lançado em 2020, eis que surge o Nuno escritor com "Porque Não Sou um Bluesman - Seis Mil Anos".

O guitarrista prometia um livro autobiográfico fazia muito tempo, e era cobrado por isso. "Ele vai sair no devido tempo", afirmou o músico a este jornalista em entrevista ao Combate Rock.

Nuno dizia que não era uma tarefa fácil, que um turbilhão de fatos e palavras enchiam sua cabeça. E nesse meio tempo vieram um disco ao vivo, gravado em um festival na Polônia e o álbum "Angola Blues", elogiadíssimo em várias partes do mundo.

O projeto do livro era antigo e tem um toque de romance em um texto autobiográfico, em que o guitarrista narra sua infância em Angola, onde nasceu, e depois a passagem para a vida adulta no Canadá e no Brasil, onde chegou ao final dos anos 70, onde consolidou a carreira musical, passando pelo blues e pelo rock.

Nuno Mindelis (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Demonstrando talento também para a literatura, Mindelis estruturou o livro em partes, onde cada uma é narrada por um alter ego. São quatro personagens que contam a vida do bluesman angolano-brasileiro, com ampla contextualização histórica e fartos detalhes de como se tornou um respeitado músico internacional.

Uma das partes mais interessantes é a que conta a paixão de Nuno Mindelis pela guitarra e pelo rock em sua adolescência, no começo dos anos 70, com as inevitáveis referências do rock de Jimi Hendrix, Deep Purple, Black Sabbath, Led Zeppelin e muitas outras grandes bandas.

"Era um momento importante da música ocidental e aquilo bateu forte naqueles moleques que viviam em Luanda, capital de Angola. O caldeirão musical e cultural que dominava aquele ambiente me influenciou completamente como artista e como pessoa", afirmou Nuno em entrevista ao programa "Revista", da CBN São Paulo.

A trajetória pessoal é o fio condutor do livro, em uma narrativa que reforça a trajetória do pertencimento ao mesmo tempo em que a arte inspirava e transpirava. 

Fica claro em cada página, em cada palavra, que Angola definiu por inteiro a personalidade do autor mesmo depois que o exílio se tornou a única alternativa a partir de 1975, quando a colônia portuguesa se tornou independente e, com isso, veio a guerra civil com três facções lutando pelo poder. Quase todos os estrangeiros ficaram sobre ameaça, principalmente os portugueses, o que significava perigo constante.

"Foi um período conturbado, mas instigante, quando tive que partir para o Canadá com 17, 18 anos. Foi uma ruptura forte. Mas, independente disso, e consegui imprimir isso em 'Angola Blues', minha terra natal está totalmente impregnada na minha alma", analisa Mindelis.

"Por que Eu Não Sou Bluesman" é uma obra um pouco diferente das autobiografias justamente por sua narrativa impregnada de "jornalismo", digamos assim: altamente informativa, com texto leve e bem humorado. É a cara da prosa/fala de Nuno Mindelis, um músico brasileiro até a alma, mesmo tendo nascido em Angola. 

Uma tarde de conversa com Nuno Mindelis é irresistível, com sua simplicidade, mas com riqueza de detalhes e uma inteligência viva e latente/pulsante. De forma implacável, conseguiu transmitir essa sensação para as páginas do livro.

"Muita gente espera um livro em que a música domina, mas eu não quis fazer essa forma", avisa Nuno na entrevista à CBN. "A música é um elemento importante, mas a história que eu conto tem outros matizes e agrega muitas outras coisas nessa trajetória."




E quanto a "Angola Blues", que, de certa forma, é influenciado diretamente pelo livro e vice-versa?

Carregado de sentimentos positivos e um astral bem alto, o guitarrista Nuno Mindelis resgata memórias da infância e da juventude – nascido em Cabinda, em Angola, filho de pais portugueses, viveu no país até 1975, aos 17 anos, quando saiu por conta da guerra civil que assolou o país logo após a independência de Portugal. 

"Muitas das canções que ouvi quando criança no rádio eram de artistas angolanos que cantavam no dialeto kimbundu, um dos vários do país. Procurei valorizar a cultura africana e angolana resgatando algumas dessas canções e compondo dentro desse espírito", diz Mindelis.

"Angola Blues" surpreende pela extrema musicalidade e pela total compatibilidade com o blues, que é um descendente direto de ritmos negros da África Ocidental que foram introduzidos nos campos agrícolas movidos a escravidão dos Estados Unidos a partir dos séculos XVIII e XIX.

O som é rico, denso e marcante, onde Mindelis, totalmente à vontade e em casa passeando pelos ritmos e melodias angolanas, desenvolve riffs e melodias inusitadas e levando o ouvinte a um mundo muito pouco conhecido no Brasil.

Se "Blues for Africa", de Adriano Grineberg, embute um certo espiritualismo por conta das experiências pessoais do artista, "Angola Blues" também traz um conceito filosófico, digamos assim.

"Eu sou da Terra. Todos nós somos terráqueos e deveríamos circular livremente pelo planeta sem restrições de conceitos políticos de fronteiras ou preconceitos ideológicos. Tem a ver com liberdade e com ideias de celebração, de felicidade", afirmou o músico.

Depois de escapar da guerra em Angola, morou um ano no Canadá longe de parte da família até aportar no Brasil pouco tempo depois para reencontrar o pai, no Rio de Janeiro.

Foi o que bastou para adotar o Brasil como pátria e engatar de vez a carreira musical enquanto exercia várias funções no mercado de trabalho, entre elas trabalhar em uma empresa aérea. 

Dividindo os louros de principal nome do blues brasileiro com o guitarrista André Christóvam e a banda carioca Blues Etílicos, são mais de 30 anos de carreira musical marcada por milhões de referências e uma diversidade estonteante para quem está acostumado à amarras dos gêneros musicais.

Sua guitarra limpa, delicada e elegante vai do blues tradicional ao blues rock texano, passado pelos ritmos eletrônicos, pelo jazz e pela música brasileira com autoridade. Seu respeito pela cultura nacional e sua música é tanta que chega a irritar tamanho é o seu conhecimento.

"Tive de abandonar uma coleção de mais de 2 mil LPs em Luanda, capital de Angola, por causa da guerra. Tinha muita, mas muita coisa de música brasileira que adquiri lá pelos anos 60. Gostava demais dos trabalhos de Jorge Ben (hoje Benjor), por exemplo", diz o músico.



Evidentemente, referências existem aos montes em "Angola Blues". Guitarras e teclados convivem em grande harmonia, omo em "Cabinda", que tem um ritmo africano-latino contagiante e solos de guitarra de extremo bom gosto.

O dueto com a cantora angolana Jéssica Areias é o ponto alto de refinamento da canção. Essa também é uma característica da ótima "Muxima", que traz a presença de Flora Purim, brasileira radicada há décadas nos Estados Unidos, onde é reconhecida como um ícone do jazz e da world music.

A canção é um autêntico blues em sua concepção, mas cresce, e muito, com a adição de um molho africano e o idioma kimbundu, ganhando uma dramaticidade a grandes clássicos soul e rhythm and blues de Nova Orleans.

A sofisticação da voz de Flora e dos solos de guitarra transformam completamente o ambiente de uma canção que poderia ser somente mais um blues.

E a festa sobe o tom com o quase blues rock "Brinca N'Areia", que flerta com vários ritmos africanos e caribenhos, com seu refrão único em português que celebra uma paixão do músico, a pria, dos tempos em que morou na capital angolana, Luanda.

"Monami Zeca" tem um balanço irresistível, com uma mistura gostosa de samba rock, blues e soul music, com algum tempero usado à exaustão pelos brasileiros do Bixiga 70. É mais uma faixa contagiante e que vai cair nas graças do público nos shows.

"País Tropical" é o seu tributo ao então Jorge Ben. A versão blueseira é cheia de suingue, reverenciando a original na percussão cariocamente malandra e precisa nos solos de guitarra maneiros, como se diz em alguns botecos do Rio. É um respiro da africanidade que caiu bem como encerramento do trabalho.

"É um passo importante e uma realização musical poder abordar esses temas, algo que sempre quis fazer", comentou o guitarrista em entrevista ao Combate Rock na época do lançamento do CD ao vivo gravado na Polônia.

Mais do que uma reparação histórica de uma lacuna abissal , ouvir blues africano tornou-se uma necessidade cultural diante de um mercado musical e fonográfico que tenta se reerguer e reinventar. 
Pouco difundida no Brasil, a música africana ganha um impulso gigante com o ótimo álbum "Angola Blues".

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