sábado, 5 de dezembro de 2020

Música e aglomeração: a desobediência civil macabra que atropela o bom senso

 Marcelo Moreira



A desobediência civil é um dos atos mais extremos que uma sociedade pode viver, exceto a própria guerra civil. Às vezes necessária, às vezes fundamental, quase sempre violenta, sempre ocorre acompanhada por imensos dilemas morais.

Os maiores exemplos dos dias atuais ocorrem em três países. Na França, os jalecos amarelos mostraram sua força a partir de 2018 ao resistir a várias mudanças trabalhistas e econômicas do presidente liberal Emmanuel Macron. Os líderes, infelizmente não conseguiram conter a infiltração de vândalos e bandidos.

Nesta semana, é a vez de vários segmentos da sociedade se unirem contra uma absurda lei que torna crime quem filmar e compartilhar imagens de "ações policiais" que frequentemente terminam em abusos, excessos e mortes de pobres, negros e imigrantes. 

A polícia dispersa, mas todos os dias os protestos retornam e cada vez mais volumosos. Infelizmente, vândalos oportunistas se infiltram e desfiguram as motivações iniciais, em tentativas de deslegitimar as manifestações.

Nos Estados Unidos, os protestos inspirados por mortes de cidadãos negros assassinados por policiais criaram o "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam), que desafiou a polícia e a ira do presidente Donaldo Trump, que chamou os manifestantes de bagunceiros e terroristas. 

Desafiando as ameaças de retaliação por forças por forças governamentais de repressão, utilizaram de forma apropriada desobediência civil para denunciar insistentemente o genocídio negro praticado por policiais.

De forma totalmente oposta em todos os sentidos - legal, moral e de simples bom senso -, a desobediência civil no Brasil está ligada à burrice, ao negacionismo, ao que de pior existe na religião e à ideologia mais atrasada e medieval (cortesia da direita e da extrema-direita).

A desobediência civil brasileira é intolerável e inaceitável sob qualquer ponto de vista, mas está sendo praticada por milhões e milhões de pessoas - volumes milhares de vezes maiores do que na França e nos Estados Unidos - sem que haja qualquer tipo de repreensão ou retaliação, sob as bênçãos e incentivos de um governo federal inapto, incompetente e criminosos liderado por um insano ignorante.

A resistência às medidas restritivas de circulação de pessoas por conta do combate à covid-19, que continua matando cada vez mais no país, é um dos capítulos mais vergonhosos da história da humanidade.

Nenhum "cansaço" ou "fadiga" justifica qualquer tipo de relaxamento das regras de isolamento social e desrespeito contínuo às orientações de médicos e normas estabelecidas pelas autoridades. 

Nada justifica que gente vagabunda se recuse a usar máscara, frequente praias e festas lotadas e continue indo a bares e restaurantes como se a pandemia tivesse acabado. 

Nada justifica que governadores e prefeitos omisso e irresponsáveis, cujas ações beiram a ações criminosas de descaso com a saúde pública, tenham flexibilizado as regras por conta de pressões políticas e econômicas.

Nada justifica que não haja um verdadeiro lockdown (fechamento total, apenas com serviços essenciais funcionando) desde sempre neste país infeliz, corrupto e desgovernado, que assiste a uma nova superlotação de hospitais e aumentos exponenciais de mortes.

A desobediência civil às avessas, que nega e renega as medidas tomadas para que a catástrofe não seja tão grave, é a marca de um período em que a ignorância predomina, carecendo de qualquer legitimidade, moral, social ou política.

O circo fica cada vez mais ridículo quando o próprio governo federa, dentro de sua medieval sanha de disseminar a ignorância, deliberadamente posterga planos de contingência para a vacinação em massa, coisa que países de todo mundo já fizeram. 

Ou seja, não vai ter vacina suficiente para os brasileiros a partir de março de 2021, que é quando esse miserável e deplorável governo pretende pensar em imunização generalizada. É tudo o que os grupos de dejetos humanos antivacina precisam para espalhar a ignorância.

O surto de burrice invadiu o nosso sagrado espaço de artes e espetáculos na última semana, com os sinais contraditórios vindos de todos os lados - os rápidos avanços na produção de vacinas ao mesmo tempo em que o undo assiste a nova onda, mais perigosa, de contágio. 

Devemos endurecer as medidas de isolamento social e retroceder nas tais fases amarelas e vermelhas ou ignorar o perigo ainda mais catastrófico e pensar apenas na economia, no bolso e nas comprinhas rameiras de Natal?

Diante de tamanhas questões, não dá para relevar as irresponsabilidades nossas de cada dia quando músicos e profissionais do entretenimento esbravejam contra as supostas medidas de endurecimento nas regras de distanciamento social - logo agora que as pessoas começavam a se habituar novamente com bares e restaurante e se aventuravam a ver um ou outro show presencial, mesmo que tal coisa seja uma irresponsabilidade gigantesca?

É inacreditável que as discussões avancem a respeito de ir ou não a espetáculos, cinemas, teatros e bares, ainda que supostamente haja protocolos de segurança aplicados - uma falácia, já que isso não acontece em pelo menos 80% dos eventos.

A polarização política contaminou de tal forma o bom senso e a razão que agora as medidas tímidas enrijecendo as medidas de isolamento social passaram a ser abertamente combatidas por uma parcela muito expressiva de músicos, apreciadores de músicas e profissionais diretos e indiretos dos ramos cultural e das artes.

De forma injustificável e perigosa, em defesa de uma economia claudicante, essa gente irresponsável defende a abertura total do setor, sem restrição nenhuma. 

"As pessoas entram em ônibus e trens lotados, então não faz sentido manter o isolamento social", vomitou um dejeto humano que se diz guitarrista de uma banda de hard rock de São Paulo. 

Essa bobagem ainda reverbera como "argumento" de gente burra que é incapaz de entender o que está em, jogo e as dimensões das consequências de tal irresponsabilidade. 

As falhas imperdoáveis de gestão de governadores e prefeitos, que fraquejaram e não impuseram as medidas mais duras necessárias não podem servir de razão para a liberação geral dos comportamentos irresponsáveis. 

Além do mais, ir ao trabalho por meio do transporte público em plena pandemia acaba sendo uma necessidade/obrigação dentro do capitalismo nocivo e predatório praticado desde sempre neste país injusto ao extremo. 

Na pior pandemia em 100 anos, ir a bares, restaurantes, praias e shows de música é um luxo absolutamente supérfluo e repugnante, inaceitável de tal forma que precisa ser combatido com veemência e ignorando promessas de "seguir todos os protocolos de saúde".

O desespero por conta da devastação financeira da área de entretenimento - a primeira a ser afetada,e de forma mais grave, sendo que será a última se recuperar - não pode turvar visões e embaçar debates a respeito da urgência e emergência do que está acontecendo: mais de mil pessoas estão morrendo diariamente na Itália e nos Estados Unidos. Aqui, morrem 600 por dia e a previsão é de aumento nesta cifra.

É extremamente grave a penúria que a maioria dos artistas e profissionais das artes e cultura está vivendo - uma classe excluída da primeira fase do auxílio emergencial, que chegou muito tarde, quando chegou, à maioria deles.

Entretanto, de forma dolorosa, precisamos entender que o entretenimento terá de ficar paralisado por mais tempo, até que haja vacinas e até que a pandemia consiga ser controlada de forma eficaz e definitiva. 

Antes disso, shows e eventos de entretenimento com público precisam ser proibidos e coibidos, com punição exemplar para quem burlar as regras e descumprir o isolamento social. 

Bares e restaurantes precisam ser fechados - e lacrados - se for o caso, já que estimulam uma "normalidade" que não existe. 

Claro que isso não ocorrerá porque o governo federal terrorista sabota qualquer tentativa séria de controle da pandemia, estimulando o desrespeito e a desobediência civil. 

Governadores e prefeitos irresponsáveis, fracos e omissos, não resistem a um pingo de pressão de quem quer que seja - e que sejam responsabilizados criminalmente por milhares de mortes por covid-19. 

E quem mais poderia ajudar nesta questão, os próprios artistas, ou silenciam, ou estimulam o rompimento do isolamento, como os irresponsáveis Eric Clapton e Van Morrison, dois estúpidos que fizeram até música contra as medidas restritivas na Inglaterra invocando a precária situação financeira do setor". 

"Não existe sentido em fazer música e arte que não seja ao vivo, com público", vomitou Clapton em recente entrevista a um jornal inglês, demonstrando o insensibilidade e desprezo pelos mortos por covid-19 e pelo próprio público que o aprecia.

Aqui no Brasil também houve artistas que não se incomodaram em realizar shows com público presencial, mas sempre se escondendo no frágil biombo do "seguimos todos os protocolos de segurança e com apenas lotação parcial". 

Não foram muitos os que mergulharam nesse fosso perigoso, mas o suficiente para abrir precedentes desagradáveis e sempre usando como escudo argumentos canalhas de que "os protocolos estão sendo observados" e de "está tudo liberado, existem, aglomerações aos montes, por que nós não podemos ganhar o nosso dinheiro?"

Estamos à beira do pior dos mundos às vésperas da chegada das vacinas e a irresponsabilidade predomina. Artistas importantes, seja pelo silêncio covarde ou pelo absurdo posicionamento de ignorar a pandemia, estão contribuindo para o prolongamento da crise e desrespeitam o seu próprio público. que o passado os assombre no futuro pós-pandemia e cobre bem caro essas faturas.

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