Marcelo Moreira
Uma necessidade às vezes é o caminho para boas ideias e traz alguma inspiração. A pandemia de covid-19, com isolamento e confinamento, tem sido pródiga em propiciar momentos interessantes e importantes da música neste período conturbado.
Sem poder sair de casa, viajar como gostaria e tocar como queria, Paul McCartney resolveu aproveitar a data redonda e fazer uma homenagem a si mesmo. Com a sua estatura gigantesca de artista pop, ele pode se dar ao luxo de fazer isso.
Quarenta anos depois, ele retoma a série de álbuns em que assume tudo, da produção à bateria, e comete um trabalho que, de certa forma, reflete os tempos em que estamos sobrevivendo - há melancolia, tristeza, doses altas de esperança e um otimismo contido.
"McCartney III" retoma o conceito de "McCartney I e II", lançados respectivamente em 1970 e 1980. Foram trabalhos marcantes que representavam fim de ciclos importantes de sua carreira e o reinício de forma revigorante.,
O primeiro foi quase expelido após ser gravado durante a crise final dos Beatles e lançado quando a banda não exista mais. Paul sabia que o grupo havia implodido em setembro de 1969 dias após o lançamento de "Abbey Road", quando John Lennon anunciou em uma reunião na Apple que estava saindo.
Paul se sentiu desrespeitado por ter feito tudo o que podia para manter a banda unida. Conseguiu ao menos seis meses de prazo para que Lennon não divulgasse a decisão para não prejudicar o lançamento do LP e do filme "Let It Be".
Depressivo e irado, refugiou-se em sua propriedade na Escócia e se entregou à bebida e à gravação de um disco solo em seu precário estúdio na fazenda. "McCartney I" é uma ode à liberdade, recheado de raiva e de louvação pelo fato de estar casado com Linda McCartney. "Maybe I'm Amazed" talvez seja uma das mais belas canções de amor e desespero.
O segundo disco, de 1980, também encerrava um ciclo glorioso de recuperação e consolidação. Era 1980, Paul dissolvia os Wings e parava para descansar e repaginar a carreira. Queria um novo recomeço, como artista gigante e que ditava as regras de mercado.
O rock era amenizado e o músico queria se mostrar cada vez mais antenado. "Comin' Up" indicava que ele se rendia ao pop, mas sem muitas concessões, ao mesmo tempo em que indicava que pretendia experimentar bastante. Assim como no primeiro volume, tocou quase todos os instrumentos em quase todas as canções.
Em recente entrevista sobre o novo álbum e a pandemia, McCartney brincou a respeito da "nova fase". "Falar em recomeço na minha idade soa estranho (risos). O disco é um marco na minha vida por conta do que estamos vivendo atualmente. O ano será um marco na vida de todos. O que mais pode fazer um músico isolado em seu estúdio? O que posso dizer é que este disco tem uma carga emocional diferente e tem certa urgência, é muito mais fresco do que alguns que gravei."
"McCartney III" é um disco mais reflexivo, equilibrado entre temas melancólicos e que remetem à infância e à juventude. Entretanto, de forma surpreendente, temos "Long Tailed Winter Bird", uma música instrumental com força suficiente pala mostrar que Paul não está para brincadeiras.
Os trabalhos de violão e baixo são estupendos, como uma percussão moderna e bastante variada. E o melhor, deixando claro que não é necessária uma superprodução para colocar um grande produto no ar.
É uma boa introdução para a simples e crua "Find My Way", uma canção que remete aos anos 80 bem pop e, por que não, comercial. Novamente violões e guitarras são o destaque, o que realça tudo aquilo que sempre soubemos: Paul McCartney é um baita guitarrista.
O passado surge em "Pretty Boys", com seu clima de Liverpool dos anos 50 e sua homenagem aos bons amigos de infância. O violão bem timbrado conduz de forma magistral a melodia em uma balada folk bem característica.
A emocionante e jazzística "Deep Deep Feeling" talvez seja o maior destaque, mesclando um vocal meio soul com um trabalho percussivo mais uma vez elogiável, resgatando algumas sonoridades dos anos 70 para marcar a nostalgia que permeia a obra. É um Paul McCartney moderno e diferente, dando um recado de que pode e sabe fazer diferente para surpreender, como também ocorre na sequência, a agressiva e raivosa "Slidin'".
Muito se comenta entre os fãs de classic rock o porquê de os astros do estilo, aqueles que nos fizeram amar o rock, não mais comporem hinos que fazem tremer o mundo. Será que o mundo hoje quer ouvir esses tais hinos?
Exigir que Paul McCartney aos 78 anos faça algo com a mesma contundência de "Helter Skelter", quando tinha 26 anos, ou que Pete Townshend (The Who), aos 75 anos, cometa a porrada "My Generation", que fez com 20, é subestimar a inteligência dos artistas e desconhecer por completo a dinâmica do processo de criação artística.
Se em "Egypt Station" McCartney surpreendeu com uma ótima obra conceitual a respeito da vida e da passagem do tempo, aqui ele mantém a pegada e mostra que está afiado e suas reflexões sobre a vida e o próprio tempo estão consumindo seus dias de confinamento.
Esqueça os hinos e os grandes hits. Isso não existe mais, nem no rock e nem na música moderna. Não queremos mais hits, pelo jeito. Contentemo-nos então com canções graciosas e belas que nos fazem para e pensar.
"McCartney III" é isso, uma carta de intenções de um quase octogenário que ainda tem o poder de nos fazer parar e prestar a atenção no que um dos gênios da música tem a dizer. O efeito é praticamente o mesmo de "Letter to You", a obra-oprima deste ano de Bruce Springsteen.
Não é possível equipará-lo ao belo trabalho de Springsteen, e nem é o caso aqui. Entretanto, paremos e ouçamos o que sir Paul McCartney tem a dizer. Seu disco de confinamento é um conforto para dias tão difíceis.
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