domingo, 6 de dezembro de 2020

Quando as vidas negras continuam não importando

 Marcelo Moreira

Um país em permanente guerra civil, com mais de 60 mil assassinatos por ano, em que vizinho odeia vizinho e em que a polícia tem dificuldade (se é que tem) para debelar o crime organizado, mas mata pobre e trabalhador com uma extrema facilidade.

A pandemia já dura décadas - cinco ou seis, talvez -, sobre tudo em megalópoles com periferias longínquas e esquecidas pelos noticiários, pelos prefeitos e governadores, mais preocupados com privatizações e em promover terraplanismos políticos.

É natural, é normal, é esperado e, assim que divulgado, totalmente ignorado e esquecido em seguida. Os Estados Unidos arderam por conta das mortes de negros desarmados por policiais brancos, a ponto de um presidente estúpido e fascista cogitar colocar a Guarda Nacional nas ruas.

Duas meninas negras, de 4 e 7 anos, brincavam na frente de casa em uma comunidade do Rio de Janeiro anteontem à tarde. Doze horas depois, eram enterradas pelas famílias após serem baleadas supostamente em uma troca de tiros no local - supostamente entre policiais e "bandidos, traficantes, milicianos, ladrões, sei lá".

Curiosamente, as famílias viram policiais perto do local dos assassinatos, mas nenhum bandido. Curiosamente, só ouviram e viram policiais atirando, e não recebendo balas E olha que moram em uma comunidade violenta, onde aprenderam na marra a saber de onde vem os tiros e, frequentemente, quem atira.

É o tipo de fato que deveria incendiar a cidade inteira, o país inteiro, com protestos interrompendo e prédios inúmeros ardendo diante de mais uma batalha da polícia contra cidadãos e crianças armadas. 

Curiosamente, nem manchete foi nos dois principais portais noticiosos do Brasil, nem nos sites dos dito grandes jornais. 

Está cada vez mais normal ler esse tipo de notícia, é natural ver meninas como Érika e Rebeca, e também a Ágata, aquela que tomou tiro nas costas e morreu na Kombi da família, também no Rio, morrerem em situações cada vez mais prosaicas e triviais. 

A morte da menina Ágata causou alguma comoção, mas também não foi manchete. Por que seria? São só mais duas menininhas pretas mortas. Que bom que seus corpos foram rapidamente recolhidos para não atrapalhar a passagem de quem quer que seja...

São Paulo deveria também estar pegando fogo, mas se mantém indiferente a dois assassinatos brutais e covardes ocorridos nos últimos dias, cometidos por policiais.

Na zona leste da cidade, familiares e amigos pediam justiça por Wenny, 18 anos, morto dentro de casa por dois PMs. Do outro lado da cidade, o grito de justiça era por NegoVila Madalena, morto por um PM de folga na zona oeste.

Então passou a ser normal PMs perseguirem negros desarmados na periferia, invadirem suas casas e executá-los, sob as vistas da vizinhança e sem nenhuma preocupação com represálias, repercussões ou punições. 

E também é normal policiais bêbados saírem de casa arrotando autoridade e poder que pensam que têm para intimidar, ameaçar e matar gente que apenas está passeando ou no "lugar errado na hora errada".  É tal gente de bem bolsonarista que odeia tudo e todos, brada contra a corrupção e a existência de "gente diferenciada", que incomoda com sua presença e sua "pobreza".
 
Nada de manchetes para o assassinato da gente preta e diferenciada por policiais. É melhor dar mais atenção a uma análise qualquer sobre a política doente e escabrosa do Brasil ou sobre alguma barbaridade vomitada por Jair Bolsonaro e seus ministros incompetentes.

E, como queriam as autoridades brancas e sem paciência para lidar com o tal do povo, o negro João Alberto Freitas, assassinado por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, virou estatística. Só mais um caso de preto morto por brancos. 

Vidas Negras Importam: inscrição feita por coletivos na avenida Paulista, em São Paulo (FOTO: MÍDIA NINJA/OPERA MUNDI)


Nem mesmo os protestos da ONU e do campeão de Fórmula 1 Lewis Hamilton foram suficientes para manter o caso absurdo no supermercado no noticiário. Afinal, temos ma pandemia de covid-19 pra combater, não é? 

Temos de ficar horas discutindo sobre uma vacina que ainda nem existe e sobre a suprema incompetência logística e de gestão do governo Bolsonaro a respeito da compra de uma ou mais Rio merecendo 20 segundos de imagens em todas as emissoras de TV. 

Qual será o próximo preto morto pela polícia nem tão branca assim? Quem será a próxima criança assassinada na "troca de tiros" entre traficantes e policiais? 

Qual será o garoto de 14 anos que vai tomar tiros de fuzil no peito dentro da casa do tio, como ocorreu recentemente em uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro? Esse outro caso esquecido, né? 

Um garoto que estava na hora errada, na casa errada, durante uma "operação policial" entre tantas outras que acontecem diariamente neste país infeliz e naquela cidade cada vez mais perigosa e asquerosa e desgovernada que é o Rio de Janeiro.

Uma das meninas mortas no Rio teria a sua primeira festa de aniversário nos próximos dias. Estava feliz porque os cinco aninhos finalmente mereceriam uma comemoração graças a muita economia da família e de vizinhos. 

Érika foi enterrada com a roupa que lembrava a personagem Moana, da Disney, que encarava o Mal e os Demônios no oceano Pacífico para acabar com uma maldição e encerrar um período de fome e tristeza afligia seu povo.

A pequena Moana da periferia do Rio sucumbiu ao Mal que a trucidou pouco antes de seu aniversário. Não conseguiu espantar a maldição da morte por balas perdidas em um mundo tosco, hostil e extremamente perigoso. 

Ela e a prima Rebeca não tiveram tempo de enfrentar os demônios de carne e osso que ousam metralhar e ignorar o povo da periferia. Tornaram-se meras baixas em uma guerra urbana incentivada por prefeitos e governadores (muitos deles atrás das grandes ou respondendo a processos pesados). Um terço do Rio é dominado por milícias e traficantes. Vamos esperar para chorar pelas próximas Érikas e Rebecas.

Enquanto isso, nas redes sociais, chovem nojeiras vomitadas em vários perfis criticando a "seletividade" das manifestações a favor das duas meninas. "Por que não há menção ou homenagem ao policial tal que morreu em tal lugar?"

Curiosamente, não há menção a nenhum policial morto nos perfis de quem vomita essa nojeira fascista, mas é fácil defender policial corrupto e assassino usando como muleta o povo pobre, preto e periférico, o "perfil predileto do bandido" que a elite e a classe média (e a não tão édia assim) adota como estereótipo.

E como é prazeroso ver o povo do rock e do metal usar esse argumento asqueroso para relevar, relativizar e normalizar as mortes dessa gente preta diferenciada que só existe para atrapalhar, não é?

É gente demais que diz gostar de rock e posa de gente inteligente e bem informada que mergulha de forma apaixonada no fascismo defendendo a famosa "higienização social", sempre bradando que bandido bom é bandido morto, mesmo que tenham 4 e 7 anos de idade e cujo crime tenha sido brincar na frente de casa, na hora errada, no dia errado e perto da gente errada. 

É gente que aposta em salvo conduto para que policiais matem crianças e inocentes e fiquem impunes, porque "estão em guerra contra bandidos", ainda que sejam incapazes de distinguir bandidos de donas de casa, de crianças de 4 anos, de adolescentes de 14 anos e de trabalhadores em bicicletas. 

Como rebater as opiniões e análises extremas de que o genocídio da gente preta e sua permanente exclusão da sociedade é um projeto secular de uma elite ignorante e criminosa?

A suposta lembrança de que policiais morrem em ações contra o crime está encharcada de preconceito e racismo, do tipo "todas as vidas importam" quando se quer criticar o "black lives matter" (vidas negras importam). É o argumento racista por excelência, que nega a violência histórica contra negros, latinos e pobres, no caso nos Estados Unidos.

Claro que as mortes de policiais merecem repúdio, seja em combate ao crime organizado, seja no combate ao crime comum. Essas vítimas do moedor de carne da violência urbana brasileira merecem homenagens, e frequentemente são, seja pela corporação, seja pelo círculo de amigos. 

No entanto, invadir perfis nas redes sociais para contrapor a morte de policiais em serviço ao assassinato de crianças por policiais incompetentes ou bandidos (como nos casos citados em São Paulo) é coisa de gente asquerosa e mau caráter. 

Explicita uma deformação hedionda de caráter e expõe todo o preconceito e ódio que assola parcela expressiva da população brasileira - e afeta o cérebro corroído de muita gente que se diz roqueira ou que toca rock.

Não é novidade que o rock brasileiro, desde sempre, é conservador e pouco afeito à diversidade e ao debate, com predominância da ojeriza ao progressismo e temas políticos a que abordem os direitos humanos. A liberalidade e o apoio à inovação que surgiu na década de 1980 ia apenas até a página 5 do livrinho. 

É cada vez mais assustador perceber o tamanho da parcela de supostos roqueiros que apoia a barbaridades bolsonaras e as ideias fascistas co matiz militar e endosso a atividades policiais criminosas. 

Quem vomita que "todas as vidas importam" é racista e precisa ser rechaçado. Será que os vagabundos que expelem esse lixo têm coragem de dizer isso na cara da mãe, do pai e dos parentes das meninas Érika e Rebeca?

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