terça-feira, 2 de março de 2021

O encontro do progressivo e do erudito em "As Missões", de Fernando Marques


Marcelo Moreira

Um período fascinante e instigante para quem tem o que mostrar. O músico, historiador, jornalista e documentarista paulista Fernando Marques, inquieto e hiperativo, não quis ficar olhando a pandemia passar e tratou de usá-la como ferramenta e inspiração para compor, criar e gravar. 

Mesmo confinado por conta da covid-19, encerrou dois projetos que estavam meio emperrados: um novo CD com canções instrumentais e uma suíte com ares de música erudita.

"Pandemusic" foi lançado no finalzinho do ano passado apenas de forma digital e surpreende pelo tom positivo em plena pandemia. Um fervoroso admirador de rock, mergulhou fundo em terreno que lhe é bem conhecido: uma mistura bem temperada de jazz, MPB, blues e muita coisa de música regional. 

Já a sua empreitada na área da música erudita é um presente a sim mesmo, ele que chega radiante aos 60 anos de idade. A suíte "As Missões" é um trabalho de fôlego que contou com a ajuda do filho João Fernando na pesquisa e na elaboração dos textos históricos que serviram de base para a longa composição. O filho também faz a narração dos eventos.

Não é a primeira vez que Marques resolve enveredar por este caminho, calando críticos que o acusavam de soberba, prepotência e extrema audácia. É de sua autoria ao menos dois trabalhos importantes para a música paulista, e, principalmente, para a região de sua amada São José do Rio Preto.

Sempre evidenciando a música brasileira em seus trabalhos, deu um passo maior em sua carreira quando, na entrada do século XXI, compõe as duas únicas sinfonias da cidade de Rio Preto: "Sinfonia Rio-pretense nº 1" e "A Lenda do Pássaro Azul".

 
Fernando Marques (FOTO: ARQUIVO PESSOAL)



"As Missões" está dividida em quatro movimentos: "Nação Indígena- A Terra - Os Índios"; "A Chegada dos Portugueses - A chegada, a convivência; "A Criação das Missões - A Catequização - Os ensinamentos"; "A Destruição das Missões - O conflito - A Dizimação". Os músicos que tocaram são todos da cidade de Rio Preto, integrantes de diversos combos eruditos.


A obra é imponente e ganha ares ainda mais extraordinários com o conteúdo histórico que expõe, colocando, em tom crítico e contextualizado, em evidência a formação do povo brasileiro e o impacto violento do contato entre os índios e os europeus portugueses, 

Além de músico e compositor - toca violão, gaita e outros instrumentos de sopro -, aventura-se no cinema e na fotografia, além de ser curador do Museu da Imagem do Som de São José do Rio Preto (SP), que ele criou, e de cuidar de parte do acervo histórico da cidade.

Assim como "Pandemusic", "As Missões", com seus mais de 20 minutos, é a sua volta aos estúdios após anos fazendo outras coisas. 

Já tocou muito pelo país e pelo mundo, fez residência musical no Japão e, por mais 20 anos, trabalhou como produtor e engenheiro de som em estúdios importantes de São Paulo. 

Se entre suas inspirações para o trabalho erudito estão Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, talvez os nomes mais estrelados da música orquestral brasileira, não faltam lampejos de rock progressivo, outra paixão de Marques, no novo trabalho.

Tem pitadas da exuberância de Emerson, Lake & Palmer, a singularidade experimental do King Crimson, a teatralidade e do Genesis, o detalhismo do perfeccionismo sinfônico do Yes e alguma coisa da ousadia do Gentle Giant. 

Exageros? Sim, é provável que haja e essas percepções estejam impregnadas deles, mas também é necessário reconhecer que é uma peça bem diferente no mercado musical atual. 

Em um momento em que a arte e a cultura estão em baixa por conta da pandemia e dos constantes ataques e presidente de inspiração fascista, é revigorante saber que há resistência, já que o ato de criar é de profunda resistência.

"As Missões" já seria um trabalho fabuloso por conta de sua iniciativa em um momento instigante e diferente de nossas vidas. Tem qualidade e é eficiente em sua proposta, mas talvez seja cedo para determinar sua posição dentro do panteão erudito brasileiro.

Nada intimidante para quem já participou de mais 100 festivais de música, sendo vencedor em 16 deles. No entanto, o primeiro disco solo apareceu somente em 1986, com "Improviso", em parceria com o poeta e músico Eli Buchala. Um de seus trabalhos, "Brasilian Bossa", atravessou fronteiras e chegou com sucesso ao Japão.

 

A seguir, a detalhada descrição dos quatro movimentos de "As Missões":


SUÍTE ORQUESTRAL “AS MISSÕES” – FERNANDO MARQUES


1º Nação indígena (A terra/ Os índios)

Até a chegada dos primeiros europeus, o Brasil era a casa de diversas tribos indígenas, com seus costumes, línguas, lendas e crenças. Todo o seu sustento vinha da terra, dos imensos rios e das matas selvagens.

  2º A chegada dos portugueses (A chegada/ A convivência)

Deixando a casa e a pátria, os portugueses se lançam no Oceano Atlântico, cujas ondas traziam perigos e a esperança de um novo mundo. O encontro com os indígenas despertou curiosidade, medo e ambição. Foi também o início de uma convivência ainda amistosa.

  3º A criação das Missões (A catequização/ A prosperidade)

No início do século XVII, partindo do Paraguai, os missionários jesuítas criam as primeiras “missões” ou “reduções”. São pequenas vilas que, no total, abrigavam quase 200.000 nativos. Lá são criadas escolas onde os indígenas aprendem latim, música e os fundamentos da fé católica. A agricultura dá sustento e trabalho aos habitantes desse pacífico e próspero projeto.

 4º A destruição das Missões (O conflito/ A destruição)

O conflito

A partir de 1624, sertanistas, conhecidos como “paulistas” e depois “bandeirantes” cercam e, anos mais tarde, começam a atacar as florescentes sociedades das reduções. Acompanhadas de mamelucos (filhos de homens brancos com mulheres nativas) e de outros indígenas, essas expedições objetivavam escravizar as populações desarmadas e despreparadas para a guerra.

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