Na era dos boicotes e cancelamentos, é fácil identificar o lado certo

 Marcelo Moreira

Roger Waters (FOTO: CAMILA CARA/T4F/DIVULGAÇÃO)

Os amigos se afastaram de Eric Clapton por conta de suas declarações negacionistas contra as vacinas e o isolamento social; Roger Waters, ex-Pink Floyd, ganhou novos amigos por incitar boicote a Israel na crise com os palestinos e por recusar vender os direitos de uma música para uma campanha do Facebook. 

Já no Brasil artistas como Roger Moreira (Ultraje a Rigor) e Digão (Raimundos) estão isolados por apoiarem políticos e políticas de extrema-direita, que mergulham facilmente no fascismo e no autoritarismo, atentando contra a democracia. 

Por outro lado, os Detonautas Roque Clube e seu vocalista, Tico Santa Cruz, se tornaram referência no ativismo e na luta antifascista.

Quem está certo? Dá para separar a obra do comportamento extra-arte de seu autor? O que dizer de cantores como Morrisey e John Lydon (Johnny Rotten, dos Sex Pistols), outra contestadores, que se tornaram conservadores a ponto de bradarem contra políticas antirracistas e contra a imigração?

 Lembremos que Morrisey é o mesmo que escreveu, com os Smiths, uma música chamada "The Queen Is Dead", que nomeou o álbum da banda em 1986...

É a típica discussão de boteco, interminável e que ninguém tem razão. Seja por ignorância ou verdadeira má fé, muita gene se desfez da coleção do Pink Floyd ou dos discos solo de Roger Waters após ele tocar no Brasil em 2018 e exibir no telão dos estádios suas críticas ao fascismo e a líderes autoritários, entre eles o então candidato a presidente Jair Bolsonaro. Deu dó das pessoinhas que descobriram só na pista do show de São Paulo qual o apito que Waters tocava...

A derrocada do deus da guitarra Eric Clapton começou cedo, ainda nos anos 70. Supostamente bêbado, em um show na Inglaterra, em 1976, desandou a falar contra os imigrantes negros no país - logo ele, amigo de vários artistas jamaicanos do reggae - e contra políticas sociais de governos trabalhistas/moderadamente de esquerda.

Ele se desculpou depois, mas o estrago estava feito. Pegou tão mal que inspirou uma campanha antirracista encabeçada por punks em 1977, o Rock Against the Racism, que serviu também pra combater o crescimento da extrema-direita no país.

Clapton aparentemente não aprendeu e voltou à carga em 2020 para criticar as medidas de isolamento social contra a covid-19. Aliou-se ao amigo Van Morrison e compôs uma música contra o lockdown na Inglaterra. 

"Lockdown", além de ser fraquinha, acentuou o isolamento do guitarrista - que deu entrevista nesta semana reclamando que os amigos o abandonaram depois de suas polêmicas declarações.

Essas idiotices são suficientes para apagar a magnífica história do músico e suas canções extraordinárias? "Layla" é menos genial porque ele se tornou um idiota?

Da mesma forma que Roger Waters não melhorou porque abraçou causas humanitárias e se levanta conytra o capitalismo selvagem e predatório. Só quem ignora as mensagens dos álbuns "Animals" e "The Wall" se surpreende com a postura de contestação e de viés esquerdista que o ex-baixista do Pink Floyd sempre teve. Suas músicas não ruins ou excelentes por conta dos brados contra Israel ou o Facebook.

É muio fácil apontar o lado certo ou o lado errado diante da polarização que toma conta do mundo em uma era em que o autoritarismo e as políticas fascistas de ódio ressurgem com força em várias partes do mundo.

É inconcebível que haja pessoas, ainda mais dentro do mundo artístico e da cultura, que combatam vacinas e acreditem em terra plana. Mas esse tipo de ser execrável existe, fazendo questão de disseminar ódio, preconceito e mentiras sobre tudo.

É de se lamentar que músicos que se mostraram tão perspicazes como Digão e Roger em algum momento de suas vidas tenham descambado para o pior dos esgotos de inspiração fascista. 

"Nós Vamos Invadir Sua Praia" e "Puteiro em João Pessoa"continuam como importantes marcos do rock nacional e os lixos fascistas proferidos por seus autores não as invalidam - ou cancelam.

 Entretanto, é mais do que evidente que a produção - ou falta de - atual deles será analisada  (ou desprezada, ou ignorada) com outros olhos. 

O viés crítico extra-arte vai predominar - e é bom que assim seja. Se as estultícies da atualidade não têm a força de cancelar as obras de qualidade do passado - e é bom que assim seja -, certamente influenciarão no que vier a ser produzido a partir de então.

O boicote é uma arma poderosa nas democracias e sociedades livres, principalmente na era das redes sociais. Quando se trata de ameaça à democracia e à liberdade de expressão, não existem lado certo e lado errado. Só existe um lado e uma postura. 

Artistas que optam pelo ódio, pelo preconceito e pelo fascismo merecem a lata de lixo da história por mais que sua obra seja, boa, perene e consiga sobreviver. 

Cancelar a obra de alguém e desprezá-la é uma questão pessoa de cada apreciador de arte e é uma decisão que deve ser respeitada - mesmo que o equívoco seja bem evidente. Já cancelar o artista que decide pelo lado errado da história é mais do que um direito - é uma necessidade e um dever.