Marcelo Moreira
"Em Brazilândia, a sociedade é dividida entre três etnias: os equinos, que governam, o povo canino e os gorilas militares. Um jumento é eleito como primeiro-ministro após um golpe dado com o Judiciário e os generais gorilas. O novo governo infecta a população com o vírus da burrice e dissemina a pandemia da ignorância. Seus fanáticos seguidores empilham livros em fogueiras, clamam que a terra é plana e lotam os templos porque creem que o deus Sumé as salvará do vírus, enquanto esses mesmos fanáticos destroem terreiros de candomblé e incendeiam laboratórios, faculdades e livrarias."
A terrível distopia descrita acima é o ponto de partida de mais uma obra conceitual da banda carioca Dorsal Atlântica, que caminha para os 40 anos de existência cada vez mais ácida e contundente na crítica política e social.
Distopia? E as semelhanças com certa republiqueta sul-americana devastada pela covid-19 e pela burrice criminosa de um governo que beira o fascismo?
"Pandemia" é o CD que já está nas mãos dos colaboradores e financiadores. É fruto de mais uma campanha de financiamento coletivo que a Dorsal empreendeu. Atualíssimo e necessário, é mais um golpe contra a ignorância e um libelo a favor da democracia e da liberdade de expressão.
Carlos Lopes, o mentor e líder da banda - está desde o começo - é o autor de todas as músicas e letras e não poupou instituições e políticos calhordas que jogaram o país nas trevas e que lucram com o ódio e a profunda ignorância.
É mais uma obra conceitual de qualidade, ficando no mínimo no mesmo nível de "Canudos", o álbum anterior, até então o melhor trabalho da importante banda de heavy metal.
Em "Canudos" Lopes e a Dorsal brilharam ao fazer ótimas analogias históricas com os massacres de caboclos e sertanejos pelo exército brasileiro no fim do século XIX e a realidade brasileira de 2017 e 2018. Os textos eram mais poéticos e cheios de metáforas.
Em "Pandemia", a ideia foi abordar a realidade de forma mais crua e direta, batendo em tudo e em todos, sobrando também para o povo sofrido que votou movido pelo ódio, encastelado no Palácio do Planalto um genocida arauto do caos, da violência e da depredação desmedida do meio ambiente, das instituições democráticas e das liberdades e direitos civis. Lopes não economizou na munição, para nossa satisfação.
Foram poucas as manifestações contra o (des)governo brasileiro por parte do rock desde 2019, quando o nefasto Jair Bolsonaro assumiu. Parecia que só as bandas Detonautas Roque Clube, Surra e Asfixia Social, todas no underground, assumiriam o ativismo político-social de protesto contra a suprema devastação de nossa sociedade.
E eis que a Dorsal Atlântica, com "Pandemia", entra na vanguarda roqueira contra o fascismo e o necrogoverno com o monumental álbum que entra para a história artística nacional como um marco no engajamento contra depredação institucional geral. O texto que abre este artigo é mais do que uma declaração de intenções: é uma declaração de guerra.
Musicalmente, é bem diferente de "Canudos", embora seja igualmente pesado e contundente. Está mais próximo do punk, embora caia muitas vezes no mais puro death metal podre e destruidor.
Também abusa bastante de colagens sonoras, com discursos de políticos e de personalidades diversas, como o ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola (1932-2004), na faixa "Número 28".
Propositalmente, o álbum novo é menos rebuscado e elaborado do que o anterior, o que lhe confere uma urgência que cai bem ao tema central. Diante desse panorama, são três as músicas que se destacam: "Pandemia", que abre o disco quebrando tudo e dando a letra do quem vem, com um som de guitarras na cara e muita pancadaria.
"Gorilas (No Passarán)" destrói qualquer tipo de pensamento militarista e ilusão a respeito de autoritarismos assassinos e genocidas. "Infectados (Teocracia e Narco-Estado)" tem a metralhadora de Carlos Lopes disparando contra as seitas religiosas nocivas e milícias criminosas, para não falar em todo o tipo de crime organizado encastelado nas instituições.
O trabalho de guitarras é espetacular, conduzindo tudo hora como uma serra elétrica destroçando os ouvidos, ora como um machado afiado no mais puro hard'n'heavy, com riffs poderosos e sujos, como ouvimos na bela canção e forma de hino "Povo (Inocente u Culpado?).
É contagiante também o ritmo e o peso de "Terra Arrasada (Treva Que Nunca Acaba)", que prepara pra o arremate bacana de "Número 28", que ilustra bem a tragédia que vivemos neste século XXI de trevas, retrocesso., violência e depredação democrática. É uma colagem sonora que diz muito politicamente do que mais de 90% da produção musical brasileira desde sempre.
A Brazilândia da Dorsal Atlântica é uma pobre terra triste e condenada, esquecida por qualquer deus e vilipendiada por todo tipo de canalha e patife encastelado na elite. É uma boa tradução do buraco em que nos encontramos atualmente neste Brasil atolado na ignorância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário