sexta-feira, 30 de julho de 2021

Documentário explica a criação de 'Pandemia', da Dorsal Atlântica

Marcelo Moreira  


Uma aula de underground e de persistência, com quase 40 anos de ativismo e protesto. O mundo está de cabeça para baixo? Então a Dorsal Atlântica chega para apontar os caminhos.

"Pandemia - Minidocumentário" é perfeito dentro do que se propõe: mostrar os bastidores das gravações de um álbum e as dificuldades de se fazer música e arte com pouco dinheiro  e olha que o CD "Pandemia", um pancada em termos de contundência e manifestação política, foi concluído graças a uma campanha bastante positiva de financiamento coletivo.

O filme curto, de apenas 15 minutos, é a primeira novidade que surgiu na esteira do lançamento do álbum. A banda prevê o lançamento de videoclipes ainda neste ano e uma revista bilíngue (português e inglês) com a história e o conceito do disco. 

Além de músico e jornalista, o guitarrista e vocalista Carlos Lopes também é professor, designer gráfico e quadrinista pela ótima revista Tupinambá.

O que chama a atenção no minidocumentário é o despojamento com que a fita foi gravada e editada. Sem refinamento e com linguagem direta, é uma forma de mostrar como se grava um disco em tempos de pandemia e como uma obra complexa como "Pandemia" se desenvolve.

"É uma maneira de agradecer a todos os apoiadores do financiamento coletivo e de aproximar o público do músico. Não há requinte, mas muita perseverança. É um trabalho importante da Dorsal Atlântica, vai direto ao ponto diante da crise política e de valores em que estamos", diz Lopes, o mentor e compositor de todas as músicas. Completam a formação do trio o irmão de Carlos, Claudio Lopes (baixo) e Braulio Drumond (bateria), todos botafoguenses, como fazem questão de explicitar no documentário.

Assim como a também carioca banda Detonautas Roque Clube, a Dorsal Atlântica está na linha de frente e vanguarda de protestos e ativismo antifascista entre os artistas brasileiros. 

O minidocumentário completa os formatos que Lopes imaginou para expandir o alcance da mensagem aproveitando para premiar muitos dos apoiadores com fotos deles recebendo o pacote artístico em casa - Mauricio Gaia, integrante da equipe Combate Rock, foi um dos contemplados com sua imagem publicada.

Lopes filmou, produziu, dirigiu e o editou a fita de forma despretensiosa. "Queria que o público soubesse como trabalhamos, e como trabalham os artistas underground. Não teve o intuito de ensinar nada, tanto que a minha narração é simples e direta. Achei importante fazer o filme como forma de integrar esse pacote de quase 40 anos dedicados à arte e à música."

Ópera-metal com mensagem política

"Em Brazilândia, a sociedade é dividida entre três etnias: os equinos, que governam, o povo canino e os gorilas militares. Um jumento é eleito como primeiro-ministro após um golpe dado com o Judiciário e os generais gorilas. O novo governo infecta a população com o vírus da burrice e dissemina a pandemia da ignorância. Seus fanáticos seguidores empilham livros em fogueiras, clamam que a terra é plana e lotam os templos porque creem que o deus Sumé as salvará do vírus, enquanto esses mesmos fanáticos destroem terreiros de candomblé e incendeiam laboratórios, faculdades e livrarias."

A terrível distopia descrita acima é o ponto de partida de mais uma obra conceitual da banda carioca Dorsal Atlântica, que caminha para os 40 anos de existência cada vez mais ácida e contundente na crítica política e social. 

Distopia? E as semelhanças com certa republiqueta sul-americana devastada pela covid-19 e pela burrice criminosa de um governo que beira o fascismo?

"Pandemia" é o CD que já está nas mãos dos colaboradores e financiadores. É fruto de mais uma campanha de financiamento coletivo que a Dorsal empreendeu. Atualíssimo e necessário, é mais um golpe contra a ignorância e um libelo a favor da democracia e da liberdade de expressão.

Carlos Lopes, o mentor e líder da banda - está desde o começo - é o autor de todas as músicas e letras e não poupou instituições e políticos calhordas que jogaram o país nas trevas e que lucram com o ódio e a profunda ignorância.

É mais uma obra conceitual de qualidade, ficando no mínimo no mesmo nível de "Canudos", o álbum anterior, até então o melhor trabalho da importante banda de heavy metal.

Em "Canudos" Lopes e a Dorsal brilharam ao fazer ótimas analogias históricas com os massacres de caboclos e sertanejos pelo exército brasileiro no fim do século XIX e a realidade brasileira de 2017 e 2018. Os textos eram mais poéticos e cheios de metáforas.

Em "Pandemia", a ideia foi abordar a realidade de forma mais crua e direta, batendo em tudo e em todos, sobrando também para o povo sofrido que votou movido pelo ódio, encastelado no Palácio do Planalto um genocida arauto do caos, da violência e da depredação desmedida do meio ambiente, das instituições democráticas e das liberdades e direitos civis. Lopes não economizou na munição, para nossa satisfação.

Foram poucas as manifestações contra o (des)governo brasileiro por parte do rock desde 2019, quando o nefasto Jair Bolsonaro assumiu. Parecia que só as bandas Detonautas Roque Clube, Surra e Asfixia Social, todas no underground, assumiriam o ativismo político-social de protesto contra a suprema devastação de nossa sociedade.

E eis que a Dorsal Atlântica, com "Pandemia", entra na vanguarda roqueira contra o fascismo e o necrogoverno com o monumental álbum que entra para a história artística nacional como um marco no engajamento contra depredação institucional geral. O texto que abre este artigo é mais do que uma declaração de intenções: é uma declaração de guerra.

Musicalmente, é bem diferente de "Canudos", embora seja igualmente pesado e contundente. Está mais próximo do punk, embora caia muitas vezes no mais puro death metal podre e destruidor.

Também abusa bastante de colagens sonoras, com discursos de políticos e de personalidades diversas, como o ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola (1932-2004), na faixa "Número 28".

Propositalmente, o álbum novo é menos rebuscado e elaborado do que o anterior, o que lhe confere uma urgência que cai bem ao tema central. Diante desse panorama, são três as músicas que se destacam: "Pandemia", que abre o disco quebrando tudo e dando a letra do quem vem, com um som de guitarras na cara e muita pancadaria.

"Gorilas (No Passarán)" destrói qualquer tipo de pensamento militarista e ilusão a respeito de autoritarismos assassinos e genocidas. "Infectados (Teocracia e Narco-Estado)" tem a metralhadora de Carlos Lopes disparando contra as seitas religiosas nocivas e milícias criminosas, para não falar em todo o tipo de crime organizado encastelado nas instituições.

O trabalho de guitarras é espetacular, conduzindo tudo hora como uma serra elétrica destroçando os ouvidos, ora como um machado afiado no mais puro hard'n'heavy, com riffs poderosos e sujos, como ouvimos na bela canção e forma de hino "Povo (Inocente u Culpado?).

É contagiante também o ritmo e o peso de "Terra Arrasada (Treva Que Nunca Acaba)", que prepara pra o arremate bacana de "Número 28", que ilustra bem a tragédia que vivemos neste século XXI de trevas, retrocesso., violência e depredação democrática. É uma colagem sonora que diz muito politicamente do que mais de 90% da produção musical brasileira desde sempre.

A Brazilândia da Dorsal Atlântica é uma pobre terra triste e condenada, esquecida por qualquer deus e vilipendiada por todo tipo de canalha e patife encastelado na elite. É uma boa tradução do buraco em que nos encontramos atualmente neste Brasil atolado na ignorância.

A capa já foi divulgada, de autoria do artista Cristiano Suarez que, com seus traços coloridos bem ao estilo tropical, fez uma representação do atual momento na politica do país.

Suarez foi o autor do cartaz ácido e perturbador da turnê da banda Dead Kennedys pelo Brasil em 2019, captando perfeitamente o momento político do Brasil e o perigo fascista que representava a eleição de Bolsonaro. 

A repercussão foi tamanha que assustou a banda, que cancelou a turnê alegando que não tinha autorizado o cartaz e que não pretendia se posicionar politicamente a respeito da vida brasileira - logo os Dead Kennedy, uma banda política por excelência desde os tempos de Jello Biafra como vocalista - formando, entre outras coisas, em história, com especialização na América Latina, está fora da banda desde 1986.

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