quinta-feira, 29 de julho de 2021

Malvada estreia com força, peso e muita ambição

 Marcelo Moreira



Todo grande artista que surgiu antes do advento da internet sonhou um dia com a cena: ansiosamente, ao lado da família, sentado no sofá, om o ouvido colado no rádio, ou olhos vidrados na TV, esperando pela primeira execução pública de sua música para o mundo.

A imagem ficou gravada na história no filme "The Wonders", quando a banda inteira, em plenos anos 60, se postou em frente ao aparelho de rádio para comemorar que "a minha música está no rádio"!!!!!

De uma forma um pouco diferente, mas com o mesmo espírito, as meninas da banda paulista Malvada curtem cada segundo de um momento mágico que é o lançamento de um álbum.

"A Noite Vai Ferver" chega ao mundo real no formato digital depois de um ano do surgimento do quarteto em plena pandemia de covid-19.

Quatro garotas destemidas que não se intimidaram e decidiram fazer um rock and roll com peso e força quando as perspectivas eram bem complicadas. As nove músicas do disco, por si, são uma vitória da persistência da arte, mas também são bem mais do que isso.

"A empolgação é total e fazia tempo que eu não via isso em uma banda. Parece que tudo é uma novidade festeira - e não deixa de ser na maioria das coisas - e dá para perceber que todas estão no mesmo patamar de comprometimento", diz a vocalista Angel Sberse, ex-participante  do programa The Voice Brasil, a TV Globo, e ex-integrante da boa banda Bendicta.

A guitarrista Bruna Tsuruda vai na mesma linha e garante estar curtindo cada segundo dessa fase de descobertas e também de riscos. "As coisas se encaixaram bem e o entrosamento foi rápido. Não tem como não desfrutar ao máximo cada segundo desse sonho."

As coisas correram rápido para o quarteto. Quando tudo parecia que o interesse por bandas de mulheres ou lideradas por garotas parecia estar arrefecendo, a Malvada surgiu para jogar luz em um segmento que ainda tem fôlego. 

A banda puxou uma fila que cresceu rapidamente com o surgimento da Crypta e da The Damnnation, além da reformulação da Nervosa, da consolidação da The Mönic e da Noite Cinza.

Se nos últimos tempos as meninas optaram pelo metal extremo para atingir um público maior, foi surpreendente a aceitação do hard rock em português pela Malvada, com canções temperadas por muito blues e muitas referências setentistas nos arranjos.

Ainda é uma banda em formação, com pouco mais de um ano de vida e poucos shows realizados (maldita pandemia!). O som é bom, muito bom, mas longe de ser inovador - talvez essa seja uma boa notícia: explorando caminhos conhecidos, mas de forma cautelosa e sólida.

No pantanoso terreno do rock pesado em português, onde a presença feminina ainda é rara, a Malvada mostra muitos predicados e bom gosto nas escolhas de timbres e arranjos. 

A guitarra de Bruna é deliciosa, irreverente e com uma malemolência que remete aos fraseados e improvisos típicos do rock inglês dos anos 70. 

Angel, por sua vez, abusa da experiência ara incrementar as interpretações com toques teatrais e pelas representações das personagens contidas nas canções. São poucas as que se saem bem nesse tipo performance, que tem como expoente maior a ótima cantora Fernanda D'Umbra, da banda Fábrica de Animais, e que também é atriz e diretora de teatro.

Os dois primeiros singles agradaram pela variedade de temas e pela qualidade alta por se tratar de estreias de uma banda com pouco tempo de vida e com instrumentistas jovens e sem tanta experiência.

"Mais Um Gole", a primeira música, foi uma grata surpresa, com seu clima dark e denso calcado em um blues pesado conduzido divinamente pela guitarra de Bruna Tsuruda. 

O hard rock em português adotado segue a trilha aberta por bandas seminais como Golpe de Estado, Carro Bomba e Made in Brazil, temperado com a força da voz potente e rouca de Angel. 

"Cada Escolha, Uma Renúncia" é um passo à frente em relação à primeira canção. É mais pesada e mais bem elaborada, abordando o tema das liberdades individuais que resvala no empoderamento feminino. 

Aqui e ali é perceptível que a banda tem uma urgência em mostrar a que veio, o que talvez explique a produção simples e enxuta a cargo de Tiago Claro (guitarrista da banda Seventh Seal e coautor de várias músicas) e Nobru Bueno. Tudo é tão intenso e incandescente, algo que é bem compreensível em um trabalho de estreia.

"A Noite Vai Ferver", a canção-título, não chega a ser um protocolo de intenções, mas estabelece suas bases para o rock festivo e meio espalhafatoso que a banda pretende. 

O climão lembra bastante os tempos áureos do Golpe de Estado (o produtor Tiago Claro também produz e empresaria a banda) e alguns ecos de Dr. Sin, especialmente na mão pesada da baterista Juliana Salgado.

"Prioridades" é outro exemplo poderoso de hard rock com tempero mais festivo, com uma linha de baixo trovejante da talentosa Ma Langer. A interpretação de Angel dá mais peso à canção, embora ela pudesse explorar mais a potência de sua voz.

A bela balada pesada "Quem Vai Saber" é um dos trunfos do disco, com seu apelo mais pop e uma execução primorosa de guitarras e violões e uma letra que foge do comum. Se "Mais Um Gole" estava cotada para ser o destaque, essa canção é superior por conta de ser um potencial hit. 

Na mesma linha temos "Ao Mesmo Tempo", que te os mesmo padrões de composição, com o diferencial de que as guitarras estão mais proeminentes, com Bruna se saindo ainda melhor do que na ótima canção anterior.

Peso e a agressividade aparecem também na "golpeana" "Pecado Capital", encharcada de groove e guitarras tortuosas que resgatam uma sonoridade que facilmente pode ser observada em bandas como Black Crowes, The Answer, Inglorious e na brasileira King Bird. 

O disco da Malvada é positivo, para cima, um manifesto de mulheres empoderadas, mas que passa ao largo do panfletarismo. 

Ao menos por enquanto, as quatro evitam abraçar causas de qualquer tipo. O rock é a principal é a principal mensagem, e elas fazem questão de celebrar a vida, como na quase épica "O Que Te Faz Bem", com um pique que traz ecos de Scorpions na maravilhosa "The Zoo".

Nos tempos de pandemia devastando nossas vidas, é bacana poder ouvir um trabalho exuberante que transborda vitalidade e desejo de fazer boa música, daquelas que dá gosto de ouvir. O primeiro trabalho das meninas faz que com elas avancem diversas casas para se ombrear a nomes fortes como o próprio Golpe de Estado, Baranga e Carro Bomba.

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