terça-feira, 13 de julho de 2021

O dia em que o rock mudou o mundo

 Marcelo Moreira





O cantor irlandês Bob Geldof suava horrores nos bastidores do estádio de Wembley. Em meio a um surto de ansiedade, teve uma rápida crise de choro. Somente ali ele teve consciência do tamanho da enrascada que havia se metido: dois estádios abarrotados por mais de 80 mil espectadores cada um, separados por 6 mil quilômetros, mais de 100 artistas mundiais do primeiro escalão em dois megashows com transmissão ao vivo para 1 bilhão de pessoas.

Geldof tinha certeza que o Live Aid, no dia 13 de julho de 1985, evento beneficente saído de sua cabeça, não ia dar certo. Temia que o som não estivesse bom, que os artistas convidados a tocar de graça não apareceriam, que houvesse alguma tragédia. 

E foi nesse clima que promoveu o evento que mudaria a história do rock, da música pop e da produção de eventos gigantescos. Não é consenso no mundo, mas em alguns lugares o Live Aid deu origem ao chamado Dia Mundial do Rock, celebrado com mais intensidade no Brasil.

O irlandês só se deu conta do estrondoso sucesso da empreitada quando foi erguido, ao final do evento, como um herói e ficou nos ombros de ninguém menos do que Paul McCartney e Pete Townshend. 

Artistas que participarm do Live Aid (FOTOS: DIVULGAÇÃO)

Foi saudado como uma das grandes personalidades do nosso tempo indicado duas vezes para o prêmio Nobel da Paz.  

“O Live Aid pode ter sido a minha grande obra, mas prejudicou totalmente minha carreira, a minha capacidade de fazer o que eu amo. Se não tivesse acontecido, tenho certeza de que eu teria sido capaz de fazer a transição do The Boomtown Rats a uma carreira solo como a do Paul Weller ou Sting”, disse o cantor em entrevista ao site Evening Standard em 2011.

Apesar disso, o amargurado Geldof revelou que não se arrepende do feito. De acordo com ele, “teria sido terrivelmente irresponsável se não tivesse promovido o show”.

Contra a fome

Se Woodstock, em 1969, é considerado o sinônimo de festival de rock – um símbolo de um gênero musical e de toda uma geração –, o Live Aid foi muito mais do que isso.

Sua importância se confunde com o próprio conceito do rock. Supera inclusive em todos os sentidos o Concert for Bangladesh, de 1971, de George Harrison, considerado o primeiro evento roqueiro beneficente de peso, e o Concert for Kampuchea (Camboja, no sudeste asiático), de Paul McCartney, de 1979.

É inegável que o Live Aid é a grande obra de Geldof. Sentado no seu sofá detonado no flat onde morava, em Londres, no final de 1984, ruminava entre goles longos de cerveja o que faria da vida após o final melancólico de sua banda pouco antes, o Boomtown Rats, de sucesso relativo entre 1978 e 1980, até ser varrido pelo final do punk e pelo surgimento da new wave. 

Irado por não receber respostas de amigos e músicos para a formação de um novo projeto musical, assistia à TV sem prestar a atenção. 

Sua ira aumentou quando um dos canais comerciais anunciou que em minutos exibiria “The Wall –The Movie”, o longa-metragem de Alan Parker baseado na obra-prima do Pink Floyd – e cujo ator principal era o próprio Geldof, por sinal elogiado pela interpretação.

Imediatamente trocou de canal e pegou o meio de um documentário sobre a seca monstruosa que atingia o nordeste da África, levando milhões de habitantes da Etiópia a padecer de fome total – tudo isso agravado pelas disputas políticas e guerra civil.

 

Indignado com as imagens de crianças esquálidas disputando migalhas com corvos e urubus debaixo de um sol insano, decidiu que tinha de fazer alguma coisa. O que veio à mente foi a gravação de um single para arrecadar fundos para combater a fome africana.

Pediu ajuda a Midge Ure, da banda pop Ultravox, e, juntos e depressa, escreveram a música “Do They Know It’s Christmas?”. 

Em seguida, abriu a agenda telefônica e começou a ligar para os amigos e amigos dos amigos: Bono e The Edge (ambos dos U2), Boy George, Paul McCartney, Duran Duran, Frankie goes to Hollywood e muitos outros.

Geldof conseguiu marcar uma entrevista com o DJ Richard Skinner, da “BBC Radio 1”, e aproveitou para divulgar a ideia de editar um single de caridade, de tal forma que, quando do recrutamento dos músicos, houvesse um enorme interesse da comunicação social no evento.

Gravado a toque de caixa para aproveitar o Natal de 1984, o projeto Band Aid reuniu a nata do pop rock inglês em um estúdio para gravar “Do They Know It’s Christmas?” O sucesso foi absurdo, com a venda de milhões de cópias no mundo inteiro.

A ideia foi copiada meses mais tarde nos Estados Unidos com a música “We Are The World” da autoria de Michael Jackson, Stevie Wonder e Lionel Richie, tendo sido este último o primeiro ponto de contato de Geldof. 

Este single chegou ao topo das tabelas nos dois lados do Atlântico. Em 1986, surgiu o Hear ‘N Aid, reunindo mais de 50 estrelas do hard rock e do heavy metal em outro evento beneficente.

O festival do festivais

Instigado por Paul McCartney e por jornalistas da BBC, Bob Geldof conseguiu apoio para a realização de um grande concerto de rock reunindo quase todos os participantes do Band Aid. 

A participação do promotor de eventos musicais Harvey Goldsmith foi primordial para transformar os planos de Geldof e Ure em realidade. O evento foi crescendo e ganhando visibilidade enquanto vários artistas ingleses e norte-americanos concordavam de imediato em participar.

No começo, Geldof teve de ficar ao telefone por quase uma semana convidando artistas amigos e negociando com agentes e empresários a liberação de outros músicos. 

Houve alguma dificuldade inicial, mas logo a adesão ao projeto virou uma avalanche. Na semana seguinte, ele é que não parava de receber ligações de vários astros mundiais querendo participar.

Inicialmente programado para o dia 13 de julho no estádio de Wembley, o templo do futebol inglês em Londres, teve de ser desmembrado para outro local diante do enorme número de artistas querendo participar. 

 

Empresários de comunicações e do show business dos Estados Unidos viabilizaram o estádio JFK, na Filadélfia, para que um evento paralelo e simultâneo fosse realizado.

Sucesso absoluto, a marca Live Aid rendeu cerca de US$ 300 milhões em 35 anos de comercialização – pena que parte do dinheiro arrecadado à época tenha sido desviado pelo caminho.

Quem participou? Simplesmente todo mundo que era relevante na história do rock até então: Geldof, Paul McCartney, The Who, Mick Jagger, Keith Richards, Ron wood, Bob Dylan, Queen, U2, Judas Priest, Black Sabbath com sua formação original, Led Zeppelin reunido com Phil Collins na bateria, David Bowie, Tina Turner, Phil Collins (que tocou por algumas horas em Londres, pegou um avião supersônico Concorde e chegou a tempo para tocar na Filadélfia), Eric Clapton, Elton John, Sade, Elvis Costello, Status Quo, Spandau Ballet, Bryan Ferry, Sting, Bryan Adams, Beach Boys, B.B. King, Style Council, Santana, Duran Duran, Madonna, Pretenders, Crosby, Stills, Nash & Young, entre muitos outros. A se lamentar, as ausências de Prince (que mandou um clipe, exibido no telão), Michael Jackson e Deep Purple (reunido em sua formação clássica, não participou devido à recusa inexplicável do guitarrista Ritchie Blackmore).

O legado do Live Aid é impossível de ser medido. Foi muito além de um bem-sucedido festival musical beneficente. Virou sinônimo de festival de rock, de solidariedade, de cumplicidade, de comprometimento e de mobilização. O Dia Internacional do Rock é apenas a face mais visível deste evento que teve impacto decisivo na história da humanidade.

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