sexta-feira, 16 de julho de 2021

Surge o Museu da Imagem e do Som, um oásis de cultura em Rio Preto

 Marcelo Moreira

 


Por fora parecia um daqueles sebos encardidos e empoeirados, cheio de tranqueiras e velharias. Impressão totalmente equivocada, à primeira vista. Aquela garagem em uma movimentada rua do centro de São José do Rio Preto (a 440 km de São Paulo) escondia uma série de tesouros da história brasileira do audiovisual.

Era o Museu da Imagem e do Som, mas ali, em 2015, nem mesmo o seu criador, o jornalista, músico e historiador Fernando Marques, sabia que tinha criado a instituição. Já tinha espalhado o acervo para a apreciação de amigos e interessados, mas sem grandes ambições. 

A joia do "museu", na verdade, era o pequeno auditório dos fundos, um verdadeiro cineclube com projetores de fitas de rolo, toca-discos, toca-fitas e computadores, além de um equilês de 1pamento de áudio fantástico para saborear shows de rock, filmes antigos e documentários raros.

Um verdadeiro paraíso na terra da música sertaneja, onde era possível ver, em tela de cinema, uma magistral apresentação do King Crimson em 1981 ou Miles Davis em um festival inglês de 1970.

Seis anos depois, o grande sonho de Marques ganhou forma como o verdadeiro Museu da Imagem e do Som a menos de dois quilômetros do local original, em meio à ferveção do bairro boêmio de Rio Preto.

Ocupando o espaço de um antigo hostel, Marques e a professora universitária Emilia Nicoletti criaram aquele que promete ser o importante espaço de cultura alternativa do noroeste do Estado de São Paulo. E o mais interessante: em constante mutação e expansão.

O acervo de Fernando Marques é do tipo de espantar especialistas tamanha a quantidade de maquinário de todas as épocas - rádios, máquinas fotográficas, fonógrafos, televisões de várias eras e cartazes, muitos cartazes de várias eras retratando filmes, documentários e exposições.

Parte dos filmes em rolo e cartuchos já está no novo local, que terá também um pequeno bistrô-café e visitas guiadas agendadas. 

 

O imenso acerto de áudio - LPs, CDs, DVDs, fitas cassete e acetatos diversos -, ainda ficará no espaço da rua Delegado Pinto de Toledo, junto ao estúdio-auditório, que servirá como cineclube auxiliar - e um pouco mais privado.

O instituto cultural, mais do que um simples museu, era um antigo sonho de Fernando Marques, um agitador cultural da cidade que nunca recebeu o devido apoio do poder público ou da própria cena para criar um local que fizesse jus à importância da cultura na região. 

Na verdade, não só não houve apoio como o jornalista foi coberto de ceticismo. "Para que a cidade precisa de um museu desse tipo?", ouvi mais de uma vez a respeito da empreitada quando estive na cidade.

Curador de vários eventos na região, Marques trabalha frequentemente para a prefeitura para garantir a história audiovisual da cidade, o que não impede de criticar tudo e todos, especialmente as administrações de partidos de direita que sempre negligenciaram a área cultural. 

Aliás, prefeitura e vereadores ignoraram por anos os projetos de Marques mesmo sabendo do que se tratava e, eventualmente, dando palpites ocasionais sobre algo que, de vez em quando, desdenhavam.

Mantém uma coluna semanal de cultura e história no Diário da Região, o principal jornal do noroeste paulista, mas gosta mesmo é de ser lembrado como agitador cultural e compositor. 

Violonista e gaitista, é um amante do jazz, do rock e do blues, mas sua produção musical, curiosamente, é dedicada à música brasileira instrumental e à música erudita. É de sua autoria a "Sinfonia Rio-pretense N° 1", de 2002 e, no passado, lançou a suíte "As Missões" em plena pandemia, ao lado do filho João Fernando.

Nos anos 70, trabalhou como produtor, engenheiro de som e arranjador em estúdios de São Paulo e encarou uma temporada de oito meses como músico residente em várias casas do Japão tocando música brasileira.

Posso dizer que é o sonho de uma vida erguer um museu em uma cidade riquíssima e importante na área do audiovisual, ainda que nem ela  mesma saiba disso, ou queira saber. O acervo é importante porque valoriza informações e peças que fazem parte da história do Brasil e da evolução desse segmento", diz Marques.

Se antes a própria residência de Marques era ponto de parada obrigatório de músicos importantes em passagem pela região, agora eles terão um instituto cultural inteirinho para se dedicar a jams sessions. 

A fundação MIS Fernando Marques será a gestora, habilitando a instituição para participar de editais públicos com a intenção de promover mostars e eventos nacionaisd e internacionais, entre outras coisas.

Hiperatividade

A pandemia de covid-19 e o isolamento social que obrigou a quase todos a ficar em casa acabou sendo um período fascinante e instigante para quem tem o que mostrar. oi o caso de Fernando Marques, que arrumou tempo e inspiração para finalizar o MIS e compor, criar e gravar. 

"Pandemusic", seu mais recente álbum, foi lançado no finalzinho do ano passado apenas de forma digital e surpreende pelo tom positivo em plena pandemia. 

Um fervoroso admirador de rock, o gaitista e violonista mergulhou fundo em terreno que lhe é bem conhecido: uma mistura bem temperada de jazz, MPB, blues e muita coisa de música regional. 

Já a sua empreitada na área da música erudita é um presente a sim mesmo, ele que chega radiante aos 60 anos de idade. 

A suíte "As Missões" é um trabalho de fôlego que contou com a ajuda do filho João Fernando na pesquisa e na elaboração dos textos históricos que serviram de base para a longa composição. O filho também faz a narração dos eventos.

Não é a primeira vez que Marques resolve enveredar por este caminho, calando críticos que o acusavam de soberba, prepotência e extrema audácia. É de sua autoria ao menos dois trabalhos importantes para a música paulista, e, principalmente, para a região de sua amada São José do Rio Preto.

Sempre evidenciando a música brasileira em seus trabalhos, deu um passo maior em sua carreira quando, na entrada do século XXI, compõe as duas únicas sinfonias da cidade de Rio Preto: "Sinfonia Rio-pretense nº 1" e "A Lenda do Pássaro Azul".

 

Fernando Marques (FOTO: ARQUIVO PESSOAL)


"As Missões" está dividida em quatro movimentos: "Nação Indígena- A Terra - Os Índios"; "A Chegada dos Portugueses - A chegada, a convivência; "A Criação das Missões - A Catequização - Os ensinamentos"; "A Destruição das Missões - O conflito - A Dizimação". Os músicos que tocaram são todos da cidade de Rio Preto, integrantes de diversos combos eruditos.


A obra é imponente e ganha ares ainda mais extraordinários com o conteúdo histórico que expõe, colocando, em tom crítico e contextualizado, em evidência a formação do povo brasileiro e o impacto violento do contato entre os índios e os europeus portugueses, 

Além de músico e compositor - toca violão, gaita e outros instrumentos de sopro -, aventura-se no cinema e na fotografia, além de ser curador do Museu da Imagem do Som de São José do Rio Preto (SP), que ele criou, e de cuidar de parte do acervo histórico da cidade.

Assim como "Pandemusic", "As Missões", com seus mais de 20 minutos, é a sua volta aos estúdios após anos fazendo outras coisas. 

Se entre suas inspirações para o trabalho erudito estão Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, talvez os nomes mais estrelados da música orquestral brasileira, não faltam lampejos de rock progressivo, outra paixão de Marques, no novo trabalho.

Tem pitadas da exuberância de Emerson, Lake & Palmer, a singularidade experimental do King Crimson, a teatralidade e do Genesis, o detalhismo do perfeccionismo sinfônico do Yes e alguma coisa da ousadia do Gentle Giant. 

Exageros? Sim, é provável que haja e essas percepções estejam impregnadas deles, mas também é necessário reconhecer que é uma peça bem diferente no mercado musical atual. 

Em um momento em que a arte e a cultura estão em baixa por conta da pandemia e dos constantes ataques e presidente de inspiração fascista, é revigorante saber que há resistência, já que o ato de criar é de profunda resistência.

"As Missões" já seria um trabalho fabuloso por conta de sua iniciativa em um momento instigante e diferente de nossas vidas. Tem qualidade e é eficiente em sua proposta, mas talvez seja cedo para determinar sua posição dentro do panteão erudito brasileiro.

Nada intimidante para quem já participou de mais 100 festivais de música, sendo vencedor em 16 deles. No entanto, o primeiro disco solo apareceu somente em 1986, com "Improviso", em parceria com o poeta e músico Eli Buchala. Um de seus trabalhos, "Brasilian Bossa", atravessou fronteiras e chegou com sucesso ao Japão.



2 comentários:

  1. Relendo o seu brilhante texto! Mais uma vez, parabéns, Marcelo, e muito obrigada por prestigiar de forma genial a nossa iniciativa !

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  2. Viva o Fernando Marques. Belo texto, caro Marcelo. Bola pra frente, agora que a memória está preservada. Beijos a todos os envolvidos.

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