sexta-feira, 26 de março de 2021

Um ano de pesadelo: o som das guitarras altas ainda está bem distante

 Marcelo Moreira

A noite desceu devagar naquele final de verão e o rock pesado do golpe de Estado comia solto no anfiteatro aberto do parque Salvador Arena, em São Bernardo do Campo (ABC Paulista). Era o encerramento de uma tarde extraordinária que ainda teve O Bardo e o Banjo e a Montanha.

Lotação esgotada, muitas crianças e profusão de hits para aquele que seria o "último show de todos os tempos". Quase ninguém ali desconfiava do que viria pela frente depois do domingo, 15 de março de 2020. 

As medidas duras e restritivas já tinham sido anunciadas pelo governo paulista e havia apreensão na plateia, que não poderia prever que aqueles seriam os nossos últimos shows presenciais. Ninguém tinha a noção do caos e do desastre.

Um ano depois, com um saldo de 303 mil mortes - e contando -, a covid-19 continua cada vez mais devastadora, matando a rodo e deixando buracos imensos na área de entretenimento e gastronomia.

Muitos músicos perderam a batalha contra o vírus, assim como vários bares, restaurantes e casas de shows. Há poucos dias São Paulo perdeu o Santa Sede Rock Bar e Poços de Caldas (MG), o New York Pub.

Derrubando todas as piores previsões, a pandemia segue destroçando e em com maior intensidade, matando mais e mais rápido aproveitando a incompetência criminosa do governo federal e das imensas falhas de caráter de parte expressiva da população, que se recusa a usar máscara, a ficar em casa e a não aglomerar.

Com o mundo parado, oferecendo música quase sempre anódina por meio de celular e computador por meio de lives, músicos e os trabalhadores da infraestrutura de shows e estúdios se veem à míngua, á espera de uma ajuda financeira que nunca chega e proibidos (com razão) de exercer sua atividade diante de plateias.

Golpe de Estado em São Bernardo, em 15 de março de 2020, o último show de todos os tempos' (FOTO: DIVULGAÇÃO)


Há um ano o pesadelo parecia que tinha data para terminar, só que não contávamos com a sabotagem presidencial, que torpedeou as tentativas científicas de conter o avanço do vírus e desprezou a necessidade de garantir suprimento de vacinas suficientes para escapar de tragédia.

Há um ano o Golpe de Estado fazia soar o último acordo distorcido e pesado da guitarra de Marcello Schevano para mergulhar em um período de trevas e horror, recheado de mortes e miséria financeira, com desemprego generalizado e paralisação total das atividades de entretenimento.

Quem tentou mudar de ramo esbarrou na falta de crédito, de consumidores, de clientes e de esperança. Quem pôde vendeu instrumentos caros por preços aviltantes; quem conseguiu faturar algum troco com lives tratou de investir e guardar; quem não teve alternativa tentou virar Uber (pelo menos um músico perdeu a vida em um assalto dirigindo em São Paulo), balconista de loja, funcionário público ou mesmo barbeiro, ainda que com um verniz um pouco mais sofisticado.

A enorme contradição destes tempos sombrios de pandemia é que nunca se ouviu e consumiu (de graça ou a preços baixíssimos) tanta música como nestes tempos. 

Com mais gente em casa, trabalhando no chamado "home office" (escritório caseiro????), em variados graus de isolamento e confinamento social, a música se tornou uma companhia indispensável. 

Dados da própria indústria mostram o crescimento de 24,9% nas vendas de música em 2020, na comparação com 2019, um efeito direto da pandemia (clique aqui para saber mais no ótimo texto de Mauro Ferreira, de O Globo). 

Uma consequência deste movimento é que nunca antes tanta gente lançou música nova ou CDs/DVDs/documentários musicais ao vivo, ampliando a oferta e a pulverização de obras de arte, reduzindo, de certa forma, o alcance e o impacto destes lançamentos. 

Trabalhar é o melhor remédio, diz o violeiro Ricardo Vignini, que gravou e lançou três CDs em 2020, mas, em muitos aspectos e circunstâncias, isso deixa de ser uma alternativa viável para a maioria. De que adianta lançar produto novo se o consumo é baixo diante da falta generalizada de dinheiro e da concorrência encarniçada por alguma luz no fim do túnel e por algum naco de atenção?

As lives surgiram de improviso e como uma solução temporária, em uma aposta no controle da pandemia. O vírus continua descontrolado, matando cada vez mais, e as lives perderam o seu apelo por conta de seu formato limitado e pouco estimulante.

A tardia Lei Aldir Blanc, com sua inerente burocracia estatal, ainda não chegou a quem precisa - artistas esfomeados e profissionais do meio artístico desempregados. Vocês esperavam o caos? Então tiveram o pior possível.

Nem o mais empedernido adversário do governo incompetente e incapaz poderia imaginar a ferocidade do terror cultural empreendido contra o segmento - e Jair Bolsonaro e seu governo de inspiração fascista arrumaram o melhor aliado possível para derrubar o setor cultural.

Montanha (FOTO: MARCELO MOREIRA)

Um ano depois da chegada do vírus, as perspectivas são terríveis e sem um pingo de solução à vista. Continuamos longe dos shows, e os músicos permanecem padecendo no inferno da inatividade, da falta de dinheiro e de perspectivas.

Claro que dá para sentir um pouco de inveja da Austrália, onde a situação permitiu que o Midnight Oil, importante banda dos anos 80, pudesse reinaugurar o circuito de espetáculo por lá em uma apresentação para 13 mil pessoas.

É uma realidade bastante distante para brasileiros sul-americanos em geral e europeus, embora nem tanto para os norte-americanos. 

A vacinação em massa nos Estados \Unidos é um alento para o mercado na lona, que já projeta turnês a partir de setembro, quando pelo menos 200 milhões de habitantes deverão estar vacinados.

Alento? Para quem? Com mais de 3 mil mortos por dia (uma catástrofe como a do 11 de setembro, em Nova York, todos os dias), ´com que tipo de perspectiva é possível sonhar?

Nem mesmo os artistas bolsonaristas - um dos maiores absurdos lógicos da história, já que Bolsonaro que destruir a arte e o conhecimento - conseguem ânimo para reagir e fingir que nada está perdido, que há esperança. 

Finalmente músicos e fãs bolsonaristas pararam de terceirizar a culpa pela inexistente gestão no Brasil e se recolheram aos seus buracos, envergonhados e padecendo pelas consequências da crise gigantesca, muito em grande parte agravadas pela incompetência e burrice ideológica do governo federal.

Um ano depois as guitarras continuam caladas e os palcos, vazios. Ainda sonho, de vez em quando, com um solo de Vinícius Castelli, guitarrista do Montanha, ou com as pancadas da bateria de Roby Pontes, do Golpe de Estado. São ecos de um passado que parece longínquo, de outra era, em que o mundo não estava suspenso e em suspense.

Realmente, estamos ouvindo bem mais música do que nos anos mais recentes, mas eu queria que isso tivesse ocorrido em circunstâncias normais, e não pelo confinamento imposto por uma pandemia que ficou incontrolável por incompetência de um governo que também se recusou a agir.

Eu queria poder ouvir o meu blues no boteco de bairro improvável em um fundão de São Bernardo e não ter de ler que uma série de bares bacanas teve de fechar as portas. 

Queria não ter o desprazer de ler que músicos estão vendendo seus instrumentos ou fechando seus estúdios. 

Queria poder ouvir um CD/mp3/streaming sabendo que, dias depois, estaria na grade para ver o melhor show daquela semana.

No momento, só nos resta saber quando é que vamos acordar deste pesadelo interminável para poder ouvir uma guitarra bem pesada ao vivo.


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