quinta-feira, 18 de julho de 2024

O poder feminino ao vivo da banda Fanny é resgatado em gravação rara

 Runaways, Girlschool, Vixe, Doro èsch, Crypta, Malvada, Nervosa, Thundermother, The Warning, Dera Matrona... Nenhuma destas bandas formadas só por mulheres teria espaço e destaque se não fosse pelo pioneirismo de quatro garotas americanas da Califórnia que ousaram quebrar o clube machista dos homens nos anos 60.  

 

Elas enfrentaram todo o tipo de machismo, misoginia, preconceito e sabotagem, mas fizeram rock pesado dos bons desde sempre. Fanny ainda evoca grandes lembranças e tem importância fundamental na história do rock.


Quase 50 anos após a sua dissolução, Fanny ressurge em álbum que promete acabar com uma lacuna da indústria fonográfica e lança  gravações de  apresentações ao vivo em estúdio de televisão alemão. “Fanny Live on Beat-Club '71-'72” é o melhor que se ode obter ao vivo do então quarteto americano de garotas.

 

O programa de TV se chamava Beat Club e supostamente usava equipamentos de última geração. Na Europa continental, tinha a mesma importância que o programa britânico “Top of the Pops” e tinha coo característica deixar as bandas tocarem com bastante liberdade. Praticamente todas as bandas importantes de rock da Inglaterra e dos Estados Unidos passaram pelas telas do beat Club.

 

Os anos de 1971 e 1972 significaram o auge da Fanny, que lançou cinco álbuns de estúdio por grandes gravadoras, com quatro singles nas paradas. Todas cantavam, escreveram canções e tocaram instrumentos. A maioria dos críticos e fãs concorda que nunca conseguiram o que queriam, mas quantas bandas conseguiram?

O resgate do interesse pela banda começou em 1998, quando surgiu um CD com uma perdida gravação de rádio, mas a qualidade não era das melhores, Esse interesse deu origem a uma caixa de quatro CDs em 2002 (“First Time in a Long Time”) composta de seu material principal, além de demos, e raridades. Tudo culminou no “Fanny: The Right to Rock”, que estreou em 2021. O filme é tanto sobre o interesse renovado por Fanny e a gravação de um novo álbum de três das integrantes (“Fanny Walked the Earth”, de 2018)) quanto sobre o história do grupo.

Os álbuns “Fanny Hil”l (1972) e “Mothers Pride’ (1973) são referências, mas é difícil encontrar a intensidade que vemos nas gravações registradas no Beat Club.  Os elogios foram muitos na época e, de novo, neste século. Este lançamento tem um som muito melhorado e inclui ambas as aparições no programa.

 

 Sete dos números vêm de 1971 e quatro de 1972. Também está incluída uma seção de passagem de som e conversas de estúdio que lembram cavalos de corrida puro-sangue ansiosos e ansiosos pelo sino de partida, coo bem descreveu uma revista inglesa tempos atrás.




Cada faixa se destaca à sua maneira. A coleção abre com a dupla “Charity Ball” (um hit Top-40) e “Place in the Country”. Ambas as faixas rugem do início ao fim. Uma versão cover de “Hey Bulldog” dos Beatles vem a seguir, completa com um verso adicional escrito por Fanny que se encaixa perfeitamente. June Millington tinha (e ainda tem) um talento para baladas pop-rock com influência folk, e sua fluida “Thinking of You” é elevada pelo cadenciado trabalho de teclado de Nickey Barclay.

 

Outro cover, “Ain’t That Peculiar”, também foi mapeado, e o excelente trabalho de slide-guitarra de June Millington é exibido com bons resultados aqui. Os vocais corajosos de Barclay carregam “Blind Alley”, e o trabalho conjunto em “Special Care” é especialmente notável. Os dois números divertidos encerram o conjunto de 1971.


As gravações de 1972, no entanto, são melhores. Fanny mostra o poder e arrogância do grupo, com destaque para a bateria de Alice DeBuhr. “Borrowed Time” tem uma cadência sólida e leva ao alegre salto de “Summer Song” que captura a exuberância genuína, com o trabalho de teclado de Barclay novamente se fundindo com as melodias e letras efervescentes de June Millington. “Knock on My Door” é, simplesmente, uma maravilha.

 

Musicalmente complexo com variações rítmicas, melódicas e harmónicas subjacentes a uma narrativa lírica de um caso de amor clandestino prestes a tornar-se público do ponto de vista (supõe-se) “da outra mulher”.

Os vocais e o baixo de Jean Millington são sempre excelentes nessas gravações, e o resto de Fanny está no nível dela. O trabalho de teclado gloriosamente agressivo de Barclay e o solo de guitarra estrondoso de Millington não poderiam ser melhores. Como foi possível essa banda não ter merecido uma atenção maior nos anos 70?

 

O resgate dessas gravações são mais do que necessárias. Não é só uma homenagem, mas também um mergulho profundo na arqueologia pop setentista, em que muita coisa está enterrada e esquecida. O documentário comelou o trabalho, e “Live at the Beat Club ’71-‘72” é p áudio definitivo que exemplifica o poder musical da garotas.

 

Muitos obstáculos

 

A história do Fanny não é muito feliz , embora seja uma história maravilhosa. A banda pode ser considerada  daquela que é considerada, de fato, a primeira banda feminina a conseguir alguma atenção e romper as barreiras machistas e sexistas.

Além de enfrentar os preconceitos citados, as integrantes ainda tinham o racismo para suportar e superar. As irmãs June e Jean Millington nasceram em Manila, capital das Filipinas (arquipélago situado ao sul do Japão, ex-colônia espanhola e norte-mericana), filhas de pai americano e mãe filipina.

A família, que incluía o irmão Michael, emigrou pra a Califórnia no inicio dos anos 60, quando as meninas eram pré-adolescentes. O racismo as acompanhou desde que chegaram a Los Angeles, algo que as marcou, assim como a amiga Brie Darling, outra imigrante filipina que viria a ser a primeira baterista da banda.

June (guitarra) e Jean (baixo e vocais) logo se destacaram nos bailes e escolas do bairro onde viviam e não demorou para que criassem aquela que provavelmente seria a primeira banda de rock só de mulheres a se destacar em Los Angeles.

Quando finalmente assumem o nome Fanny, em 1969, e são obrigadas a trocar de baterista porque Darling ficou grávida, a fita cresce e mostra detalhes de como a banda quase chegou ao estrelato e os motivos de não terem alcançado o sucesso.

Poderosas e desencanadas, trilharam o mesmo caminho da icônica Suzi Quatro: assustavam o mercado e os homens porque eram indomáveis e incontroláveis. Meteram o pé na porta e combateram com vigor todos os preconceitos - machismo, sexismo, racismo e a homofobia, já que ao menos duas das quatro integrantes eram lésbicas assumidas, ainda que discretas. Era demais para o mundo unilateral e unidimensional dos homens que dominavam a indústria fonográfica.

Admiradas por David Bowie, Mick Jagger e Todd Rundgren, eram sucesso de crítica e cometeram cinco álbuns muito bons entre 1970 e 1975. Só que não vendiam. Nunca estouraram porque nunca tiveram uma música no topo das paradas - Suzi Quatro teve várias na Europa.

 

O sucesso não veio

Idolatradas por músicos e produtores, elas já era cult antes mesmo de terem completado 25 anos de idade, o que queria dizer que jamais fariam sucesso - não como Fanny, e não fazendo o rock pesado, mas de qualidade, que faziam.

June e a baterista Alice de Buhr pularam fora. Patti Quatro, imã de Suzi, entrou para ser guitarrista, mas a mágica tinha se quebrado e ninguém mais parecia ter interesse no rock melódico que as quatro moças faziam, emulando uma época dourada do rock setentista ultrapassado enquanto o punk e a disco music virraam moda. Era o fim da banda.

O filme começa e termina com a tentativa de retorno da Fanny 50 anos depois do início. June, Jean e Brie, que continuaram amigas por todo esse tempo, finalmente aceitam entrar juntas em estúdio no instituo cultural de música criado por June e uma sócia. O feitiço estava de volta e demora apenas um mês para que decidam gravar um novo CD e fazer uma nova turnê.

O trio fez de tudo para dar certo em um esforço louvável, tudo registrado pelas câmeras. "Fanny Walked the Earth" foi lançado em 2019 e tem participações especiais de Patti Quatro (visivelmente feliz e agradecida pelo convite) e da ex-baterista Alice de Buhr - a tecladista e cantora Nickey Barcley, da formação original, não foi encontrada para a reunião).

Com a ajuda do baixista Lee Madeloni (filho de June), aquela quadrilha de vovós incendiárias estava quase no ponto para tomar a Califórnia e o mundo de assalto de novo quando Jean sofreu um derrame cerebral a uma semana do primeiro show da turnê. Com o lado direito do corpo paralisado, recuperou a fala e alguns movimentos, mas não consegue mais tocar aos 70 anos de idade.

É uma história de superação, mas sem final feliz, ou daquele que gostaríamos, com, a banda nos palcos 50 anos depois e gozando de algum sucesso - ou ao menos do prazer de voltar a tocar juntas depois de tanta dificuldade e obstáculos.

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