Runaways, Girlschool, Vixe, Doro èsch, Crypta, Malvada, Nervosa, Thundermother, The Warning, Dera Matrona... Nenhuma destas bandas formadas só por mulheres teria espaço e destaque se não fosse pelo pioneirismo de quatro garotas americanas da Califórnia que ousaram quebrar o clube machista dos homens nos anos 60.
Elas
enfrentaram todo o tipo de machismo, misoginia, preconceito e sabotagem, mas
fizeram rock pesado dos bons desde sempre. Fanny ainda evoca grandes lembranças
e tem importância fundamental na história do rock.
Quase 50 anos após a sua dissolução, Fanny ressurge em álbum
que promete acabar com uma lacuna da indústria fonográfica e lança gravações de apresentações ao vivo em estúdio de televisão
alemão. “Fanny Live on Beat-Club '71-'72” é o melhor que se ode obter ao vivo
do então quarteto americano de garotas.
O
programa de TV se chamava Beat Club e supostamente usava equipamentos de última
geração. Na Europa continental, tinha a mesma importância que o programa
britânico “Top of the Pops” e tinha coo característica deixar as bandas tocarem
com bastante liberdade. Praticamente todas as bandas importantes de rock da
Inglaterra e dos Estados Unidos passaram pelas telas do beat Club.
Os
anos de 1971 e 1972 significaram o auge da Fanny, que lançou cinco álbuns de
estúdio por grandes gravadoras, com quatro singles nas paradas. Todas cantavam,
escreveram canções e tocaram instrumentos. A maioria dos críticos e fãs
concorda que nunca conseguiram o que queriam, mas quantas bandas conseguiram?
O resgate do interesse pela banda começou em 1998, quando
surgiu um CD com uma perdida gravação de rádio, mas a qualidade não era das melhores,
Esse interesse deu origem a uma caixa de quatro CDs em 2002 (“First Time in a
Long Time”) composta de seu material principal, além de demos, e raridades.
Tudo culminou no “Fanny: The Right to Rock”, que estreou em 2021. O filme é
tanto sobre o interesse renovado por Fanny e a gravação de um novo álbum de
três das integrantes (“Fanny Walked the Earth”, de 2018)) quanto sobre o
história do grupo.
Os álbuns “Fanny Hil”l (1972) e “Mothers Pride’ (1973) são
referências, mas é difícil encontrar a intensidade que vemos nas gravações
registradas no Beat Club. Os elogios
foram muitos na época e, de novo, neste século. Este lançamento tem um som
muito melhorado e inclui ambas as aparições no programa.
Sete dos números vêm de 1971 e quatro de 1972.
Também está incluída uma seção de passagem de som e conversas de estúdio que
lembram cavalos de corrida puro-sangue ansiosos e ansiosos pelo sino de partida,
coo bem descreveu uma revista inglesa tempos atrás.
Cada faixa se destaca à sua maneira. A coleção abre com a
dupla “Charity Ball” (um hit Top-40) e “Place in the Country”. Ambas as faixas
rugem do início ao fim. Uma versão cover de “Hey Bulldog” dos Beatles vem a
seguir, completa com um verso adicional escrito por Fanny que se encaixa
perfeitamente. June Millington tinha (e ainda tem) um talento para baladas
pop-rock com influência folk, e sua fluida “Thinking of You” é elevada pelo
cadenciado trabalho de teclado de Nickey Barclay.
Outro
cover, “Ain’t That Peculiar”, também foi mapeado, e o excelente trabalho de
slide-guitarra de June Millington é exibido com bons resultados aqui. Os vocais
corajosos de Barclay carregam “Blind Alley”, e o trabalho conjunto em “Special
Care” é especialmente notável. Os dois números divertidos encerram o conjunto
de 1971.
As gravações de 1972, no entanto, são melhores. Fanny mostra o poder e
arrogância do grupo, com destaque para a bateria de Alice DeBuhr. “Borrowed
Time” tem uma cadência sólida e leva ao alegre salto de “Summer Song” que
captura a exuberância genuína, com o trabalho de teclado de Barclay novamente
se fundindo com as melodias e letras efervescentes de June Millington. “Knock
on My Door” é, simplesmente, uma maravilha.
Musicalmente
complexo com variações rítmicas, melódicas e harmónicas subjacentes a uma
narrativa lírica de um caso de amor clandestino prestes a tornar-se público do
ponto de vista (supõe-se) “da outra mulher”.
Os vocais e o baixo de Jean Millington são sempre excelentes nessas gravações, e
o resto de Fanny está no nível dela. O trabalho de teclado gloriosamente
agressivo de Barclay e o solo de guitarra estrondoso de Millington não poderiam
ser melhores. Como foi possível essa banda não ter merecido uma atenção
maior nos anos 70?
O
resgate dessas gravações são mais do que necessárias. Não é só uma homenagem,
mas também um mergulho profundo na arqueologia pop setentista, em que muita
coisa está enterrada e esquecida. O documentário comelou o trabalho, e “Live at
the Beat Club ’71-‘72” é p áudio definitivo que exemplifica o poder musical da
garotas.
Muitos obstáculos
A história do Fanny não é muito feliz , embora seja uma história
maravilhosa. A banda pode ser considerada daquela que é considerada, de fato, a primeira
banda feminina a conseguir alguma atenção e romper as barreiras machistas e
sexistas.
Além de enfrentar os preconceitos citados, as integrantes ainda tinham o
racismo para suportar e superar. As irmãs June e Jean Millington nasceram em
Manila, capital das Filipinas (arquipélago situado ao sul do Japão, ex-colônia
espanhola e norte-mericana), filhas de pai americano e mãe filipina.
A família, que incluía o irmão Michael, emigrou pra a Califórnia no inicio dos
anos 60, quando as meninas eram pré-adolescentes. O racismo as acompanhou desde
que chegaram a Los Angeles, algo que as marcou, assim como a amiga Brie
Darling, outra imigrante filipina que viria a ser a primeira baterista da
banda.
June (guitarra) e Jean (baixo e vocais) logo se destacaram nos bailes e escolas
do bairro onde viviam e não demorou para que criassem aquela que provavelmente
seria a primeira banda de rock só de mulheres a se destacar em Los Angeles.
Quando finalmente assumem o nome Fanny, em 1969, e são obrigadas a trocar de
baterista porque Darling ficou grávida, a fita cresce e mostra detalhes de como
a banda quase chegou ao estrelato e os motivos de não terem alcançado o
sucesso.
Poderosas e desencanadas, trilharam o mesmo caminho da icônica Suzi Quatro:
assustavam o mercado e os homens porque eram indomáveis e incontroláveis.
Meteram o pé na porta e combateram com vigor todos os preconceitos - machismo,
sexismo, racismo e a homofobia, já que ao menos duas das quatro integrantes
eram lésbicas assumidas, ainda que discretas. Era demais para o mundo
unilateral e unidimensional dos homens que dominavam a indústria fonográfica.
Admiradas por David Bowie, Mick Jagger e Todd Rundgren, eram sucesso de crítica
e cometeram cinco álbuns muito bons entre 1970 e 1975. Só que não vendiam.
Nunca estouraram porque nunca tiveram uma música no topo das paradas - Suzi
Quatro teve várias na Europa.
O sucesso não veio
Idolatradas por músicos e produtores, elas já era cult antes mesmo de terem completado 25 anos de idade, o que queria dizer que jamais fariam sucesso - não como Fanny, e não fazendo o rock pesado, mas de qualidade, que faziam.
June e a baterista Alice de Buhr pularam fora. Patti Quatro, imã de Suzi, entrou para ser guitarrista, mas a mágica tinha se quebrado e ninguém mais parecia ter interesse no rock melódico que as quatro moças faziam, emulando uma época dourada do rock setentista ultrapassado enquanto o punk e a disco music virraam moda. Era o fim da banda.
O filme começa e termina com a tentativa de retorno da Fanny 50 anos depois do início. June, Jean e Brie, que continuaram amigas por todo esse tempo, finalmente aceitam entrar juntas em estúdio no instituo cultural de música criado por June e uma sócia. O feitiço estava de volta e demora apenas um mês para que decidam gravar um novo CD e fazer uma nova turnê.
O trio fez de tudo para dar certo em um esforço louvável, tudo registrado pelas câmeras. "Fanny Walked the Earth" foi lançado em 2019 e tem participações especiais de Patti Quatro (visivelmente feliz e agradecida pelo convite) e da ex-baterista Alice de Buhr - a tecladista e cantora Nickey Barcley, da formação original, não foi encontrada para a reunião).
Com a ajuda do baixista Lee Madeloni (filho de June), aquela quadrilha de vovós incendiárias estava quase no ponto para tomar a Califórnia e o mundo de assalto de novo quando Jean sofreu um derrame cerebral a uma semana do primeiro show da turnê. Com o lado direito do corpo paralisado, recuperou a fala e alguns movimentos, mas não consegue mais tocar aos 70 anos de idade.
É uma história de superação, mas sem final feliz, ou daquele que gostaríamos, com, a banda nos palcos 50 anos depois e gozando de algum sucesso - ou ao menos do prazer de voltar a tocar juntas depois de tanta dificuldade e obstáculos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário