quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Nuno Mndelis resgata cançoes rejeitadas e as transforma em belas crônicas

 

 Fazer diferente faz a diferença, costuma dizer o sábio gênio do rock desde sempre – seja ele qual for. O guitarrista Nuno Mindelis sempre acreditou nessa possibilidade e se transformou em um instrumentista respeitado nacional e internacionalmente. Sempre fez questão de experimentar e seus álbuns mostram essa faceta.

 

Depois do ótimo “Angola Blues”, em que revisitava a cultura de sua terra natal com toques bem pessoais, Nuno imaginava voltar ao blues mais tradicional, em que a guitarra seria a personagem principal e falaria mais alto. Foi assim em alguns singles que lançou desde 2022, com a habitual habilidade e o toque de  sempre, mas o guitarrista gosta de surpreender. 

 

Em agosto, com uma sutileza que também lhe é peculiar, lançou o EP “Recusadas Pelas Gravadoras”, com quatro canções em português que fazem jus ao título. É uma seleção das fitas demo enviadas, entre tantas outras, ao longo das décadas de 70 e 80 e ignoradas pelas gravadoras.

 

Se nenhuma delas é grande candidata a hit radiofônico, todas são de boa qualidade e evocam um artista diferente e criativo, por mais que as canções dificilmente entrassem na moda – fosse qual fosse a moda.

 

Como um entusiasta da língua portuguesa, Nuno Mindelis sabe jogar com as palavras e usar bem algumas figuras de linguagem, como sarcasmo e ironia. Elas estão presentes nas canções do EP, mas o que salta aos ouvidos é a elegância dos versos sem o menor traço de apelação. Refletem o que o artista pensava e cantava 30 ou 40 anos atrás, e ainda não carregavam a sofisticação que viria a imprimir anos mais tarde, seja em português ou em inglês.

 

“Grande Lance” é a melhor das canções, onde Nuno consegue um balanço adequado entre um rock com um acento mais pop e passagens do blues que conferem a tal elegância já mencionada. Não surpreende que tenham sido recusadas por gravadoras e selos – era boa demais para que os responsáveis por selecionar artistas e repertórios pudessem digerir naqueles tempos.

“Este EP é uma celebração dessas demos esquecidas que nunca tiveram sua chance”, diz o músico. Ele fez questão de usar na capa do trabalho uma lata de lixo com as fitas cassetes espalhadas, “o provável destino de todas as canções que foram ignoradas naqueles tempos”.

 

Se “Grande Lance “ é a melhor, contendo uma versatilidade que Nuno Mindelis sempre imprimiu em seus trabalhos, “Onde Vai Você” resume bem as intenções de recuperar um trabalho que tem valor, em uma jornada bem humorada e nostálgica. A guitarra é frenética, mas sem ser agressiva, e dá o tom desse pop rock de boa levada.

 

“Carrossel” vai pelo mesmo caminho, em uma crônica gostosa sobre a forma como encaramos a vida difícil de todos os dias, abusando de metáforas simples e que casam bem como o blues acessível e uma melodia embalada por um teclado descolado. “Trapo Farrapo” é uma música de amor com um acento de troça, um rock básico que tem uma guitarra insinuante e bom naipe de metais.

 

Se hoje as quatro canções soam diferentes, imagine na época em que caíram na mesa de “avaliadores” mais preocupados com coisas mais apressadas e básicas como as batatas fritas de “Você Não Soube Me Amar”, da Blitz, e outras pérolas pop pouco inspiradas daquele início de rock nacional dos anos 80;



“Recusadas Por Gravadoras” é um trabalho que precisa ser contextualizado, e talvez não represente o que é o artista Nuno Mindelis na atualidade, mas é representativo de um modo bastante pessoal de compor e de encaixar sua guitarra diferenciada e característica em muitas de suas facetas.  São músicas boas que cairiam bem no pop rock claudicante dos anos 70 ou no esfuziante cenário ensolarado dos estertores da ditadura militar na década seguinte.

 

Quem se acostumou com o blues encharcado de feeling e solos abrasivos vai estranhar Mindelis se “aventurando” em uma praia um pouco mais acessível e flertando com um mundo mais estilizado.

 

 Por outro lado, quem absorveu com gosto álbuns com “Outros Nunos” e “Angels & Clowns” vai perceber claramente a conexão  e o conceito que sempre nortearam a carreira do angolano que adotou o Brasil como lar e que tem a rara habilidade de sintetizar e deglutir todo tipo de blues e transformá-lo em muitas coisas. O novo EP elucida um pouco mais a rica trajetória musical de Nuno Mindelis.

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