Fazer diferente faz a
diferença, costuma dizer o sábio gênio do rock desde sempre – seja ele qual
for. O guitarrista Nuno Mindelis sempre acreditou nessa possibilidade e se
transformou em um instrumentista respeitado nacional e internacionalmente. Sempre
fez questão de experimentar e seus álbuns mostram essa faceta.
Depois do ótimo “Angola Blues”, em que revisitava a cultura de sua terra
natal com toques bem pessoais, Nuno imaginava voltar ao blues mais tradicional,
em que a guitarra seria a personagem principal e falaria mais alto. Foi assim
em alguns singles que lançou desde 2022, com a habitual habilidade e o toque de
sempre, mas o guitarrista gosta de
surpreender.
Em agosto, com uma sutileza que também lhe é peculiar, lançou o EP
“Recusadas Pelas Gravadoras”, com quatro canções em português que fazem jus ao
título. É uma seleção das fitas demo enviadas, entre tantas outras, ao longo das décadas
de 70 e 80 e ignoradas pelas gravadoras.
Se nenhuma delas é grande candidata a hit radiofônico, todas são de boa
qualidade e evocam um artista diferente e criativo, por mais que as canções
dificilmente entrassem na moda – fosse qual fosse a moda.
Como um entusiasta da língua portuguesa, Nuno Mindelis sabe jogar com as
palavras e usar bem algumas figuras de linguagem, como sarcasmo e ironia. Elas
estão presentes nas canções do EP, mas o que salta aos ouvidos é a elegância
dos versos sem o menor traço de apelação. Refletem o que o artista pensava e
cantava 30 ou 40 anos atrás, e ainda não carregavam a sofisticação que viria a
imprimir anos mais tarde, seja em português ou em inglês.
“Grande Lance” é a melhor das canções, onde Nuno consegue um balanço
adequado entre um rock com um acento mais pop e passagens do blues que conferem
a tal elegância já mencionada. Não surpreende que tenham sido recusadas por
gravadoras e selos – era boa demais para que os responsáveis por selecionar
artistas e repertórios pudessem digerir naqueles tempos.
“Este EP é uma celebração dessas demos esquecidas que nunca tiveram sua
chance”, diz o músico. Ele fez questão de usar na capa do trabalho uma lata de
lixo com as fitas cassetes espalhadas, “o provável destino de todas as canções
que foram ignoradas naqueles tempos”.
Se “Grande Lance “ é a melhor, contendo uma versatilidade que Nuno Mindelis
sempre imprimiu em seus trabalhos, “Onde Vai Você” resume bem as intenções de
recuperar um trabalho que tem valor, em uma jornada bem humorada e nostálgica.
A guitarra é frenética, mas sem ser agressiva, e dá o tom desse pop rock de boa
levada.
“Carrossel” vai pelo mesmo caminho, em uma crônica gostosa sobre a forma
como encaramos a vida difícil de todos os dias, abusando de metáforas simples e
que casam bem como o blues acessível e uma melodia embalada por um teclado descolado.
“Trapo Farrapo” é uma música de amor com um acento de troça, um rock
básico que tem uma guitarra insinuante e bom naipe de metais.
Se hoje as quatro canções soam diferentes, imagine na época em que
caíram na mesa de “avaliadores” mais preocupados com coisas mais apressadas e
básicas como as batatas fritas de “Você Não Soube Me Amar”, da Blitz, e outras
pérolas pop pouco inspiradas daquele início de rock nacional dos anos 80;
“Recusadas Por Gravadoras” é um trabalho que precisa ser
contextualizado, e talvez não represente o que é o artista Nuno Mindelis na
atualidade, mas é representativo de um modo bastante pessoal de compor e de
encaixar sua guitarra diferenciada e característica em muitas de suas facetas.
São músicas boas que cairiam bem no pop rock claudicante dos anos 70 ou
no esfuziante cenário ensolarado dos estertores da ditadura militar na década
seguinte.
Quem se acostumou com o blues encharcado de feeling e solos abrasivos
vai estranhar Mindelis se “aventurando” em uma praia um pouco mais acessível e
flertando com um mundo mais estilizado.
Por outro lado, quem absorveu com gosto álbuns com “Outros Nunos”
e “Angels & Clowns” vai perceber claramente a conexão e o conceito
que sempre nortearam a carreira do angolano que adotou o Brasil como lar e que
tem a rara habilidade de sintetizar e deglutir todo tipo de blues e
transformá-lo em muitas coisas. O novo EP elucida um pouco mais a rica
trajetória musical de Nuno Mindelis.
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