Marcelo Moreira
Bagunça, baixaria, baderna, violência, putaria. Grosseria. Selvageria. Profundo mau gosto e uma manifestação artística repulsiva isso quando a consideravam uma manifestação artística, o que não era o caso, por exemplo, de Frank Sinatra, uma das maiores vozes que já existiram.
O rock incomodava, contestava, insultava e afrontava, deixando que o jovem depois da II Guerra Mundial, finalmente tinha voz e queria participar da sociedade. Queria ser ouvido e não ser apenas enquadrado e dirigido. E o rock se tornou uma das manifestações humanas mais importantes da história.
Baluarte da liberdade de expressão no Ocidente e ponta de lança na oposição ao conservadorismo, o gênero musical se tornou irreconhecível no século XXI por causa do reacionarismo e extremo preconceito contra outros gêneros musicais, para não falar que se virou um antro conservador que atenta até mesmo contra a liberdade de expressão da qual tanto se beneficiou e e tanto abraçou.
Depois de cinco anos, finalmente policiais miitare4s de São Paulo estão sendo julgados pelo massacre de Paraisópolis, na zona sul da cidade. Em 2019, alegando perseguição a dois suspeitos de assalto em uma madrugada, cerca de 40 PMs tentaram enquadrar e acabar com uma festa funk no meio da rua.
Era madrugada e os PMs justificaram a violência dizendo que os frequentadores hostilizaram a polícia e deram “apoio” aos “supostos suspeitos”. Houve violência, algum confronto e pelo menos 50 jovens foram encurralados em um beco sem saída
.No tumulto, nove morreram pisoteados e quase 30 ficaram feridos. Dez policiais que participaram da “operação” estão sendo julgados pela acusação de homicídio com dolo eventual, em que se assume o risco de causar mortes.
As notícias sobre o começo do julgamento foram o suficiente para que todo o tipo de preconceito e racismo aflorassem em tempos de extrema polarização política ascensão de uma extrema-direita que namora o fascismo – odeia pobres, negros, índios, nordestinos, esquerdistas, jornalistas, artistas e qualquer tipo de manifestação contrária ao conservadorismo.
E fôramos roqueiros conservadores que encabelaram os primeiros ataques ao funk do tipo carioca e periférico nas redes sociais, apelando para “baixa qualidade artística”, pela “violência intrínseca”, pela “suposta falta de educação, pela baixaria e pela “extrema proximidade com o crime”, seja este qual for. Qualquer semelhança coimo rock nas décadas de 50, 60 e 70 é mera coincidência?
Foi nos anos 80 que o rock rapidamente foi abandonando a contracultura para assumir um viés mais reacionário por se sentir ameaçado pelo nascente rap/hip hop, que dominou as mentes da juventude negra e tomou o lugar do rock como manifestação cultural que afrontava, confrontava e colocava o jovem de novo no centro do universo.
Os argumentos para desqualificar não surpreenderam e eram os mesmo de hoje contra o funk: valor cultural inexistente, assim como o artístico, letras pobres e apelativas e exaltação do crime e da violência – o mesmo crime e a violência à qual a juventude negra e hispânica das periferias das cidades americanas era submetida pela opressão social branca desde sempre.
O resultado é que o rock encolheu no mundo e o rap se tornou gigante no mundo no Brasil, cresceu demais, mas teve de dividir o reinado com o funk carioca., que tomou conta das periferias e se tornou a manifestação cultural predominante de uma gera~]ao jovem falsamente alienada, que não se identifica com os valores da classe média branca da zona sul carioca ou dos points badalados de São Paulo.
É bem interessante vermos uma nova safra de artistas e bandas novas surgindo no rock e no metal, mas eles falam “cada vez mais para menos gente”.
O Terno, Boogarins, The Baggios, Autoramas,. Malvada, The Mönic. Eskröta, Crypta e Nervosa são os grandes nomes de um rock que tenta ressurgir, masque são ignorados pelo garoto e pela garota que estuda em escola pública nas periferias e nas favelas. Fazem um som totalmente distante da realidade desses jovens – e mais ainda em relação aos temas e letras que compõem.
Nada de errado nisso e faz parte da vida. Assim como o jazz foi a grande manifestação artística dos anos 30 e 40, o rock o foi durante três décadas até ser destronado no final dos anos 80. São ciclos culturais normais.
O que não é normal e não deve a ser aceitável é desprezar e desqualificar uma manifestação cultural apenas por medinho, inveja e ciúme, e pior: apelando para as mesmas desqualificações que sempre recaíram, sobre o rock.
Gostemos ou não, por mais que nos irrite os valores que pregam e que eventualmente haja alguma vinculação comum ou outro evento que esteja associada a atividades ilegais, o funk é uma manifestação cultural e muito importante, assim como o rap nos anos 80 e 90.
Não foram poucos os roqueiros brancos de classe média de odiavam e menosprezavam os Racionais MCs e o Pavilhão 9 nos anos 90, muitas vezes abusando do absurdo de associar o suposto “baixo nível” à raça negra que predominava no gênero musical. Suprema ironia: já naqueles tempos os grupos e artistas de rap lotavam casas noturnas e ginásios frequentados pela elite branca que não hesitava em pagar caro pelos ingressos...
E, nem um pouco surpreendente, as redes sociais foram tomadas por comentários racistas, preconceituosos, discriminatórios e pejorativos, coroados com o clássico “quem mandou estar fora de casa de madrugada? Quem nadou estar em local cheio de bandidos? Quem mandou estar ouvindo música de merda? Mereceram morrer mesmo”...
Alguém se surpreende com esse tipo de coisa? Serpa que dá para entender porque o rock não tem mais apelo para uma juventude periférica que lida diariamente como preconceito? Que não atrai mais o jovem branco de classe média que tem horror a qualquer tipo de “mensagem política e social e prefere o mundo incolor, insípido e inodoro do sertanejo, tão identificado com o mundo da direita e extrema-direita conservadora
A convivência com essa realidade e esse “novo mundo” parece ser demais para o roqueiro conservador que não suporta novidades e o novo, que quer passar o resto da miserável vida ouvindo “Smoke on the Water”,do Deep Pirple, e “Satisfaction”, dos Rolling Stones todo os dias, o dia inteiro, em rádios de rock clássico fossilizadas e que aprofundam esse cenário pavoroso e pantanoso.
Não é necessário gostar ou apreciar. Nem mesmo reconhecer que é uma manifestação cultural – por mais que ir contra isso seja brigar com a realidade. O que se pede é respeito e empatia, e pesar pelas mortes de jovens em um covarde ataque policial despropositado. Pede-se a mesma empatia que tivemos com os 242 mortos na boate Kiss, em Santa Maria (RS), que pegou fogo em 2013. A maioria dos mortos era de universitários brancos qe ouviam música de acento folclórico próxima de um som sertanejo.
Atacar uma manifestação cultural apelando para a desumanidade e perversidade -“mereceram morrer” – só aumenta o abismo moral que que está cindindo a nossa sociedade. O rock não pode encampar esse tipo de coisa e nem aceitar esse tio de gente nojenta.