Expansionista, diversificada, nostálgica e muito criativa. A guitarra blues empunhada pelas mulheres ganhou mais um capítulo com os mais recentes lançamentos em uma profusão de criatividade e qualidade.
São jovens instrumentistas que demonstram uma experiência e maturidade que surpreende, além de não terem receio de experimentar e ousar, mesmo em searas tradicionais.
As americanas Ally Venable e Samantha Fish conseguiram revigorar revigorar o gênero buscando inspiração no rock, no folk e na country music; a sérvia Ana Popovic abraçou sem medo o mundo pop e a inglesa Joanne Shaw Taylor revestiu seu toque sofisticado de um tradicionalismo com sotaque moderno.
- Ally Venable é um legítimo produto deste século. Tem só 24 anos de idade, mas toca como uma veterana, a ponto de arrancar elogios de gente como Bonnie Raitt e Susan Tedeschi, duas das mais importantes guitarristas do blues moderno.
Texana como outra jovem durona e virtuose, Jackie Venson, Ally tem uma discografia respeitável e lançou recentemente "Real Gone", seu melhor trabalho e candidato ás listas de melhores do ano. Tem peso, tem timbre diferenciado e muita energia.
Suas referências são as melhores possíveis e, caminhando diretamente para o rock. Mas é no blues que ela se destaca co uma pequena ajudinha de amigos da pesada, como Buddy Guy na arrasa-quarteirão "Texas Louisiana".
Os dois se divertem homenageando figuras importantes da música de seus Estados natais e demonstraram um entrosamento invejável - e improvável por conta da diferença de idade, 64 anos.
A moça esbanja qualidade em uma canção típica do cancioneiro blues acústico, com muita sensibilidade e delicadeza em "Blues Is My Best Friend", onde canta divinamente e transborda feeling e sensibilidade. Seu solo no meio da música é excelente e cativante.
O rock chega com tudo na faixa-título, onde certamente enche de orgulho Billy Gibbons, outra lenda texana que lidera o ZZ Top. Os riffs são certeiros, com solos que exalam urgência e força.
O onipresente Joe Bonamassa, maior nome do blues da atualidade, não poderia deixar de dar uma canja, ele que já produziu e tocou com Joanna Connor e Joanne Shaw Taylor.
"Broken and Blue" é uma balada blues que transpira sensibilidade e competência, onde Ally se revela uma cantora inspirada sob a batuta de um guitarrista estrelado. Uma canção que poderia estar em qualquer disco recente de Bonamassa.
E ainda tem pérolas como "Don't Lose Me", "Justifyin'", "Going Home" e uma saraivada de blues com pitadas de rock que soam incandescentes e frenéticos. Com seu novo álbum, chegou ao mesmo patamar de Ana Popovic, Samantha Fish, a citada Joanne Shaw Taylor, Joanna Connor, Jackie Venson e Erja Lyytinen.
- Destaque em diversos festivais europeus há quase duas décadas, a sérvia Ana Popovic desembarcou nos Estados Unidos disposta a furar a barreira do preconceito contra os estrangeiros que se aventuram no blues, algo recorrente contra os brasileiros, por exemplo.
Até mesmo ela se surpreendeu com o sucesso dela, caindo nas graças dos americanos mais tradicionalistas e ainda penetrando em terrenos mais espinhosos, como o daqueles que apreciam o blues mais moderno.
"Trilogy" foi um de seus projetos mais bem-sucedidos, um disco triplo contendo muito blues, muita soul music e música mais pop e acessível.
E é nessa praia que que a guitarrista europeia ressurge com seu mais recente trabalho, "Power", assumindo sua "americanidade", com sotaque guitarrístico próprio e vocais bacanas, com tal desenvoltura que alguns questionam se ela é mesmo sérvia.
"Rise Up" é uma delícia de jazz pop onde Ana desfila uma classe e versatilidade contagiantes, misturando groove e solos de muito bom gosto.
E não é que tem bossa nova? "Power Over Me" tem um sotaque meio carioca, meio novaiorquino, com um balanço regado a seção de metais que surpreende pelo groove latino e pelo bom desempenho notável nos vocais. Ana Popovic brinca com sua voz e faz com que todo o conjunto de instrumentistas se destaque.
Tem reggae e calipso? Também tem, e com acentuados elementos latinos novamente."Doin' This". Toda a influência de Carlo Santana transpira na guitarra malemolente e cheia de balanço embalada por base em teclados que fazem da canção algo bem diferente de tudo o qu ela já fez.
Ela atira para outros lados, acertando sempre e mirando outros públicos e outras praias em 'Deep Down", "Rise It" e "Strong Taste", Mostrando que, indo além do blues, sua total imersão na música americana foi uma excelente decisão, ainda que arriscada.
- Samantha Fish ainda não chegou aos 35 anos de idade, mas é a mais elogiada das guitarristas de blues dos últimos cinco anos nos Estados Unidos. Transita de forma desenvolta por todos os subgêneros e causa arrepios com sua destreza e pegada firme, para não falar do timbre incandescente.
Com os elogios e a a boa recepção de todos os seus álbuns, especialmente "Faster", sentiu-se credenciada a explorar outros ambientes, e o fez com a ajuda de um guitarrista virtuoso e de outra praia, Jesse Dayton, um nome importante na área da country music.
A parceria inusitada o estúdio rendeu passeios pelo jazz, pelo rock e pelo funk, tudo regado a guitarras afiadas e flamejantes, que não economizaram na ousadia.
"Death Wish Blues", o nome do álbum, poderia remeter a algo mais tradicional do blues, mas a faixa-título nos leva a outra direção: um rock vigoroso e pesado, cheio de guitarras saturadas e riffs poderosos.
"Down in the Mud" é um cavalo-de-pau para o funk, com as guitarras cheias de efeitos embarcando no melhor estilo Carlos Alomar (Santana, David Bowie) com um molho todo especial e um vocal bem trabalhado de Dayton. E o duelo de guitarras no meio da canção é bem saboroso.
É uma preparação par a excelente "Riders", o primeiro single divulgado, com um dueto saboroso temperado por um blues misturando com funk que remete aos melhores momentos dos anos 70. É forte, é pegajoso, é dançante.
Se a trinca inicial tem essa pegada, o que dizer do resto do álbum? É tão poderoso quanto, com os dois guitarristas esbanjando talento e qualidade nas composições.
"Settle For Less" envereda por um rock alternativo simples, mas repleto de "clima sujo" de boteco de periferia, desafiador e meio profano. "Trauma" segue na mesma linha, com Dayton dando o tom os vocais e duelando nas guitarras com Samantha.
Bastante coeso e regular, "Death Wish Blues" mostra ainda boas canções como "No Apology", uma canção pop por excelência, mas sem grandes atrativos, e "Flooted Love", mais um rock com acento alternativo e guitarras nervosas, evidenciando uma certa diversidade sonora.
"Dangerous People" é a cara dessa diversidade, com seus arranjo mais modernos uma batida que emula algo de eletrônico, assim como as vozes processadas.
É um álbum diferente da musicista, com menos blues e mais experimentações e tiros para outras direções. Samantha Fish olha novamente para o futuro e isso é muito bom.
- Da Irlanda vem a ótima guitarrista Grainne Duffy, que atinge a maturidade aos 36 anos em processo parecido com o de Samantha Fish. Fiel a uma tradição britânica, a moça aposta em um blues rock mais tradicional e sem muitas variações.
Influenciada por Gary Moore (1952-2011) e Rory Gallagher (1948-1995), referências históricas e conterrâneos, ela desfila elegância e bom gosto na escolha de temas em seu mais novo disco, "Dirt Woman Blues".
Mesmo que opte por uma sonoridade mais "old school", consegue dar uma cara de modernidade em algumas canções, como é o caso de "Running Back to You", uma canção com jeitão tradicional com uma linha de guitarra interessante na linha texana.
"Rise Above" vai na mesma toada, com riffs variando entre o blues rock e o folk americano embasando um vocal bem ao estilo irlandês, intercalado com alguma pitada de sotaque de Boston.
"What's It Going to Be?" é mais blueseira, sem grande ousadia, apesar do vocal bem feito e delicado. "Sweet Liberation" é um mergulho interessante no blues rock da Costa Leste, remetendo quase que diretamente a Gov't Mule com uma levada á la Rolling Stones em alguns momentos.
Se inovação não é a tônica do disco "Dirt Woman Blues", a fidelidade a um estilo mais despojado é a característica mais marcante tanto nos riffs como nos vocais, como é possível observar em "Hold On to You" e "Well Well Well".. Um pouco mais de ambição aparece em "Yes I Am", com um trabalho notável de guitarras e solos bem construídos.
Com o destaque que vem tendo no blues britânico, é mais uma candidata a ser apadrinhada por Joe Bonamassa, da mesma forma que Joanne Shaw Taylor.
– Joanne Shaw Taylor é mais uma boa artista britânica a mergulhar na cultura americana de raiz e colher bons resultados, seguindo os exemplos bem-sucedidos de Eric Clapton, Van Morrison e U2, entre outros. Isso é resultado direto do trabalho com o maior nome do blues da atualidade, o guitarrista onipresente Joe Bonamassa, que resolveu se aventurar como produtor.
A guitarrista inglesa coloca na praça seu terceiro álbum desde 2021 – um deles ao vivo – e esbanja bom gosto na escolha do repertório e dos timbres de guitarra mais limpos.
Para os puristas e fãs mais radicais, a notícia não é boa. O som está mais pop e caindo para a country music em “Nobody’s Fool”, o recém-lançado disco.
“Won’t Be Fooled Again” é o maior exemplo desse direcionamento, e cm direito a uma participação muito especial de Bonamassa, de novo participando da produção. É uma canção pop pura, bem feita e bem executada, com um show de Bonamassa nos dois solos.
É curioso esse direcionamento sabendo que Bonamassa produziu o disco anterior da musicista inglesa, cm dos dois caindo de cabeça no blues americano de raiz, em um discaço. O direcionamento pop e country era um antigo anseio de Joanne, que nunca negou a admiração por uam série de artistas americanos.
“Just No Getting Over You” (Dream Cruise) é o retrato dessa admiração, em que passeia pelo cancioneiro pop com arranjos de extrema qualidade que jogam a música para cima e para frente em um country soul de primeira qualidade.
“Nobody’s Fool”, a canção, tem delicadeza e sofisticação na medida certa, seja na guitarra acústica que serve de base seja na guitarra manhosa e cheia de efeitos que ressalta a melodia.
No baladão country conduzido por piano e violoncelo (blo trabalho de Tina Guo) “Fade Away” Joanne se aproxima do gospel em clima intimista, enquanto que “Then There’s You” volta a ressaltar a delicadeza da interpretação em um ambiente mais controlado.
“Runaway” flerta com o folk com suas guitarras acústicas e um baixo distorcido que dá um outro aspecto a uma canção bonita e meio displicente, que destoa de certa forma das outras canções.
Outro convidado de peso abrilhanta o álbum – Dave Stewart, ex-Eurythmics, transforma em um pop classudo “Missionary Man”, que cairia muito bem na vo de Aretha Franklin. Sem os excessos na produção, Stewart domina tudo e imprime m aspecto de soul music em alguns arranjos.
Inusitada é a participação de Carmen Vandenberg, guitarrista da banda Bones e ex-colaboradora de Jeff Beck. Ela dá um colorido diferente para a acelerada “Figure It Out”, uma gema pop de inspiração oitentista. É uma canção simples e eficiente, a melhor desde curioso álbum, que tem todos os ingredientes da cultura roqueira britânica.
Por fim, temos a canção que talvez seja a marca registrada do álbum. “New Love” é um achado pop que remete ao que de melhor os grupos femininos dos anos 60 produziram, com coros e segundas vozes cativantes, e uma linha mellódica grudenta e alto astral.
Se alguém queria blues, é melhor ir buscar disco anterior, “The Blues Album”. Assim como outras guitarristas e cantoras de blues rock, como a australiana Orianthi, opção por mudanças não atendeu a necessidades artísticas de mercado, mas pura e simples vontade de explorar novos mundos. Embute riscos, mas as recompensas são gratificantes. Mais uma vez Taylor fez um grande trabalho.
– Jackie Venson é uma guitarrista texana que é muito talentosa e versátil. Ignora padrões e conceitos e grava o que quer da forma que quer, ao estilo da baixista esplendorosa Esperanza Spalding.
“Love Transcends” é um disco de blues, mas é tão versátil e tão surpreendente que pode perfeitamente ser considerado uma obra experimental com tantos recursos utilizados.
‘Rollin’ On”, por exemplo, é uma beleza de blues movido a guitarra e piano, escorrendo feeling por todos os poros. “See What You Want” é um blues pesado e eficiente, daqueles que tiram sorrisos dos taciturnos.
Com o instrumento semiplugado, ela dá um show de interpretação nas ótimas “On Step Forward” e “Til This Pain Goes Away”, com dedilhados precisos e fraseados invejáveis, feitos com tanta facilidade que chega a irritar.
“Always Free”, seu maior hit, ganha uma versão mais contida e sossegada, o que realça a sua condição de extraordinária intérprete. negra como Jimi Hendrix, é frequentemente comparada a ele, o que a lisonjeia, mas nem tanto por cnta do excesso de obviedade na comparação.
Seja como for, ela não pode negar a influência, assim como a de outro gênio, Eric Gales, principalmente na grooveada canção “Cover My Eyes”, que contém um solo extraordinário de guitarra com um timbre diferente e instigante.
E tem também funk, daqueles de fazer Sly Stone se orgulhar. “Fall of the USA” tem um balanço irresistível, com fraseados cativantes e riffs ganchudos que ganham a adição de uma linha de baixo de responsabilidade.
O funk permanece na faixa-título, mas com um groove mais voltado para o rock, com uma guitarra mais passada e ousada, que permeia a canção como uma cama aveludada para a voz estonteante de Jackie Venson.
O disco está menos pesado do que os anteriores, mas é o mais intenso e diversificado. É a melhor versão da guitarrista texana, em todo o seu esplendor.