Bastaram quatro ano de sórdido bolsonarismo para que o rótulo conservador de viés fascista fosse colado de forma quase definitiva no rock brasileiro, em especial em suas vertentes mais pesadas.
Da forma mais desesperadora, o gênero chega muito perto da ojeriza que causa o sertanejo por conta das questões políticas e da polarização. A diferença é que a imensa maioria dos artistas sertanejos não se incomodam com isso, já que aderiram de bom grado ao mundo podre do conservadorismo bolsonarista nefasto.
É uma tendência crescente, para tristeza imensa de quem valoriza boas práticas progressistas e respeito político á democracia, ainda que com divergências. O rock e metal brasileiros se tornaram intolerantes e, de certa maneira, desumanos, sendo que a recente separação do Shaman exacerbou a situação e explicitou que o rótulo conservador "colou" nos gêneros musicais.
A implosão de uma das bandas mais importantes do cenário teve a política e a polarização como panos de fundo. Em discussão com fãs nas redes sociais, o baterista Ricardo Confessori, abusou de xingamentos homofóbicos e até de cunho racista - ele é notório ultraconservador e cansou de fazer postagens apoiando intervenção militar, clamando por ditadura e manifestando simpatia aos terroristas de Brasília em 8 de janeiro.
Mesmo tocando com o baterista há quase 30 anos e o conhecendo pelo mesmo período, o baixista do Shaman, Luis Mariutti, entendeu que era demais e decidiu sair da banda, que acabou horas depois, pelo mesmo motivo, em comunicado do guitarrista Hugo Mariutti, o responsável pela marca.
A repercussão do fim da banda e dos motivos extrapolou o mundo do rock e serviu como exemplo de como a divisão política está afetando as vidas de muita gente.
Pior do que isso, jogou luz no suposto avanço do conservadorismo de viés fascista no rock pesado e, em última instância, no rock em geral. De forma lamentável e insana, Confessori recebeu muito mais apoio do que deveria e era esperado por conta de seu comportamento deplorável. É vergonhoso observar o quanto de fãs e músicos do gênero são totalmente preconceituosos e medievais.
Não bastasse o comportamento de ogro e troglodita que causou a implosão do Shaman, o baterista foi ainda mais odioso ao anunciar que ressuscitaria sua banda solo com "roqueiros raiz", músicos que "não precisariam pedir autorização para a esposa para ensaiar" (em alusão a Luis Mariutti, cuja esposa coordena a sua carreira) e que não se preocupem com "comportamentos politicamente corretos".
Quando foi que viramos "conservadores quase fascistas" e não percebemos? Como deixamos esses personagens bizarros tomarem conta do espaço e do discurso, atropelando as atitudes outrora contestatórias, de confronto, de rebeldia e de progressismo? Como é possível que não reajamos a bobagens do tipo "não devemos misturar rock com política"?
Como foi que a liberdade de expressão foi tão vilipendiada em nosso meio a ponto de ser confundida com a liberdade delinquir, de fender e de espalhar mentiras? E como alguém que se diz roqueiro aceita sem pestanejar esses comportamento desprezíveis?
O rock contestador e libertário não existe mais. Para cada Dorsal Atlântica, Ratos de Porão, Black Pantera, Inocentes, Plebe Rude e Detonautas existe uma multidão do outro lado corroendo o prestígio e a reputação de rebeldia, com a lamentável constatação de que o discurso conservador está prevalecendo - mais por omissão do que propriamente por um crescimento expressivo de fascistas.
Estamos nos calando enquanto os apoiadores de gente como Confessori está proliferando e tomando conta dos espaços e dos discursos.
O predomínio conservador no debate e na reverberação colocaram o rock e o heavy metal nas cordas e na defensiva. Por omissão, estamos levando a fama de conviver e tolerar racistas, homofóbicos e preconceituosos de todos os tipos. A vergonha é imensa.
Na contramão da história
O rock conservador tem lugar na vida cultural do país e do mundo? O assunto ainda está quente e não costuma ter conclusão. Os debates viram o show de horrores que costumamos ver nas políticas partidárias de vários países, e principalmente no Brasil.
O roqueiro conservador deveria ser uma minoria, uma coisa exótica e apenas curiosa, mas existem espécimes além da conta nos Estados Unidos e na Inglaterra - sempre foi comum por lá, mas muito mais explícito com a chegada da pandemia de covid-19 e o consequente (e necessário) isolamento social. No Brasil, no entanto, os bueiros foram abertos e esses seres pantanosos, em maior número do que esperado, estão empesteando a sociedade.
Por definição e por evolução histórica, o rock conservador é um anacronismo e um contrassenso, já que embute as ideias de contestação, ativismo, rebeldia e crítica ao sistema, seja ele qual for.
Mas como combinar esses fatores com a gênese roqueira da América Latina, por exemplo, onde na maioria dos lugares o rock and roll foi abraçado pela classe média?
No Brasil foi assim. A classe média mais antenada e descolada dos anos 50 e 60 aderiu à novidade norte-americana, surgifa entre os negros do blues, a base da pirâmide social, e assimilada pela classe trabalhadora branca mais pobre e simples. É só verificar a origem social dos principais nomes do gênero nos Estados Unnidos e também na Inglaterra.
Em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador foram os filhos de lasse média bem criados que começaram a disseminar o rock com certas doses de contestaçao e rebeldia, mas somente até a página 3.
Excetuando-se uma parcela expressiva dos nomes ligdos ao punk brasileiro e ao metal, o rock foi essencialmente algo de classe média, e de uma classe média típica, conservadora nos costumes e nem tanto na cultura.
Não surpreende que artistas que se dedidacaram ao gênero nos anos 70 e 80 tenham se tornado ressentidos e fossilizados no século XXI.
Integrantes do Ultraje a Rigor e o cantor Lobão, por exemplo, espécimes de uma legítima classe média, se fartaram nos bônus do mercado fonográfico favorável ao mesmo tepo em que exalavam imagem de polêmicos, rebeldes e até contestadores, até que caíssem no pior do conservadorismo político e de costumes, a ponto de se ligarem à extrema-direita.
Fora da ordem
Por isso é que causou mal-estar além da conta a declaração do professor de história Fábio Cascadura a respeito do assunto. De forma direta, decretou algo que deveria ser óbvio em recente entrevista ao site da revista Carta Capital: "O rock não tem vocação para o conservadorismo e se engana quem pensa desta forma."
Cascadura foi líder e vocalista da banda baiana Cascadura, uma pioneira na mistura de punk, hardcore e música regional nordestina. Existiu por 25 anos até que o músico se mudasse para o Canadá. Bolsista, estudou história em Toronto, onde faz doutorado e lidera uma série de estudos.
Suas afirmações trouxeram a ira de um grupo de músicos e roqueiros inconformados com o ue consideraram uma "lacração" do ex-músico e desde sempre professor de história. Por que o apreciador de rock não pode ser conservador?
De forma simples e direta, porque não pode. É uma afronta ao bom senso e à história em si. É brigar contra realidade, contra os fatos, contra a notícia. Rock adesista ao sistema e subserviente aos poderosos e aos governos não é rock, não é arte, não é nada.
Roqueiro conservador costuma ser um personagem ignorante e contraditório. Desconhece a origem o que escuta e não entende o que escuta. Reclama do Pink Floyd quando descobre o significado de álbuns como "Aninals" e "The Wall". Fica irritado quando percebe, tardiamente, que o Motorhead sempre chutou as canelas o tempo todo, sobretudo do mundo conservador americano e britânico.
É contraditório quado clama pela liberdade e adora bandas libertárias - mesmo quando não sabe disso -, mas se incomoda quando essas mesmas bandas, ou outras mais ativistas, pedem liberdade ou lutam por ela. E fala mal de de Rage Against the Machine e System of a Down, que são engajadas até a medula óssea.
Ou seja, a liberdade que vale é apenas a do roqueiro conservador, e não a do ativista e engajado, que quase sempre é antirracista e antifascista...
Contra o sistema
O professor Fábio Caascadura, ex-líder de banda libertária, engajada e ativista, consegue enumerar uma dezena de motivos para estabelecer que rock conservador não faz sentido, não só por não ter vocação, mas por ser uma contradição em si.
"Tive um período de intensa pesquisa sobre esse tema ainda antes de ingressar no curso de história. Meu interesse pelo rock me levou a buscar referências africanas nele, já que ele é fruto da tradição cultural da música negra do sul dos Estados Unido", diz Cascadura. "O componente social do rock é muito forte e explícito, com carga crítica e intensa posição de oposição."
De fora simples, ao estudar a diáspora africana desde o século XVII, Cascadura estabelece analogias e semelhanças entre as culturas tribais e as fundações do rock nos Estados Unido, a partir do blues, e não vê paralelos que possam explicar ou justificar tendências conservadoras no gênero musical.
Que haja uma tentativa de enxertar conceitos neoliberais no meio roqueiro, fruto da indústria do entretenimento cooptada pelo capitalismo, faz algum sentido, principalmente pela enorme fonte dinheiro e de lucros que se tornou.
Ainda assim, imputar um aspecto conservador puramente econômico não invalida as outras características que afastam o rock do mundo conservador nos aspectos ideológico, político e de costumes.
Quando a coisa descamba para o lado da extrema-direita e o fascismo, com ataques à democracia e elogios ao autoritarismo e à censura feitos por supostos roqueiros e artistas totaomente equivocados, percebemos a total falta de sintonia dessa gente com a realidadece. E aí que fica escancarado que o conservadorismo no rock não faz nenhum sentido, chegando a ser ofensivo diante de tanta ignorância.
Essa guinada de pensamento conservador em uma juventude nem tão jovem a parti dos aos 2000 justifica, em parte, a perda de apelo o rock, que tem cada vez menos espaço em quase todos os ambientes.
Quando roqueiros de peso começam a admitir que a funkeira Anitta é muito mais roqueira do que a maioria, em termos de engajamento, ativismo e rebeldia, é sinal de que o gênero se seus fãs estão mergulhados em um abismo profundo.
Não é por outro motivo que o rap é muito mais próximo dos jovens há mais de 20 anos, falando a linguagem do jovem e abordando os temas que são mais caros aos jovens de periferia e que anseiam por uma sociedade com mis diálogo e menos desigualdade social.
"Fomos uma banda muito consciente do nosso lugar a serviço do combate ao racismo, à misoginia e à homofobia. O rock não tem vocação conservadora e quem assim pensa está enganado", vaticina o professor Fábio Cascadura.
https://www.cartacapital.com.br/blogs/augusto-diniz/o-rock-nao-tem-vocacao-conservadora-e-quem-assim-pensa-esta-enganado-diz-fabio-cascadura/?fbclid=IwAR1u6IKNONag-5teLPpmobYvq8T4sG1flVpMmObnQ3vojNX-EBCqE3gLkOI