Desbravar territórios inóspitos, como se fosse um polonês desembarcado no Brasil para fazer samba com sotaque de Varsóvia... É mais ou menos assim que nos 70 e 80 ingleses e americanos viam brasileiros, alemães e argentinos entre outros, que se aventuravam a tocar rock.
Com o blues é a mesma coisa, sendo que o preconceito dos americanos é maior, em alguns momentos. Como seria possível fazer blues com brasilidade sem que o "sotaque" brasileiro descaracterizasse o gênero?
"Mandinga" é a resposta. O álbum mais emblemático do guitarrista paulistano André Christóvam, está completando 35 anos de seu lançamento e ainda hoje é considerado o mais relevante e importante lançamento do blues nacional cantado em português.
"É um trabalho importante porque eu deixei de ser um músico que acompanhava outros artistas para se tornar um compositor e músico autoral", diz Christóvam no documentário "Mandiga", dirigido por Egler Cordeiro. "Eu tentei fazer blues e rock como se fosse um americano ou um inglês, e percebi que podia fazer blues como se fosse um brasileiro e exaltando uma brasilidade."
A celebração do 35 anos do icônico álbum começa com a exibição do documentários na 16ª edição do In-Edit -Festival Internacional de Documentários Musicais, que ocorre de 12 a 23 de junho em São Paulo
Repleto de boas ideias e explorando a tão propalada "brasilidade", "Manfinga" reafirmou Christóvam como o pilar do blues nacional ao lado do grupo carioca Blues Etílicos - não à toa, as duas instituições tiveram amplo relacionamento até os anos 90 que ia além das colaborações em álbuns de ambos.
Não há como não pensar em blues nacional sem que venha a imagem de André Christóvam. Com experiência no rock om o trio Fickle Picle e tocando com Rita Lee e Heróis do Brasil, o guitarrista tinha experiências ricas de vivência quando esteve nos Estados Unidos, que lhe valeram trabalhos nas equipes de produção de artistas americanos em passagens pelo Brasil.
De cara os principais colaboradores de Christóvam perceberam que o material composto pelo guitarrista era diferente muito bom. Era uma época mágica, em que o músico ascendia rapidamente e encantava as plateias. Era 1988 e um empresário da música assistiu a um dos shows em um pequeno boteco e imediatamente decidiu oferecer um contrato de gravação.
"Achei que era um músico extraordinário e no dia seguinte consegui telefone ele e o chamei para conversar," conta o executivo João Lara Mesquita, da gravadora Eldorado. "Tinha chegado tarde em casa e dormi até o meio da tarde. Quando acordei minha mãe disse que um tal de João Lara tinha me ligado várias vezes. Era um sonho", lembra o guitarrista.
Às vésperas de completar 30 anos, Christóvam não tinha a exata ideia da importância do que estava gravando, mas sabia que havia amadurecido o suficiente para registrar um trabalho sólido e consistente - e também saia que seu material autoral era consistente.
Se o Blues Etílicos ainda buscava o equilíbrio nas canções autorais em português e inglês atirando para vário lados, André Christóvam sabia bem o que almejava.
O blues com suingue e groove brasileiros, com toques importantes de musicalidade brasileira, casava perfeitamente com as letras bem sacadas e com o humor peculiar e mordaz que o guitarrista sempre destilou. Definitivamente, era um blues diferente e original.
"Foi uma das grandes lições que aprendi: blues é sentimento sim, mas também é vivência e captura de emoções do dia a dia", afirma ele no documentário. "Percebi que a brasilidade estava no meu dia a dia. era só abrir os jornais e ver televisão que os temas estavam lá, todas as histórias prontinhas par serem musicadas."
E então Christóvma se tornou um grande cronista do cotidiano brasileiro, satirizando todo mundo - e sacaneando também. "Confortável" ri da busca pela eterna beleza ao or com surfistas e personagens diversos. "Genuíno Pedaço do Cristo" brinca com a criminalidade e a corrupção., em uma das canções mais bacanas já feitas o blues rock nacional.
Tem um baita improviso de blues que remete a "Kansas City", que de interlúdio para um clássico, "Dados Chumbados", uma balda blues melancólica que comprova a genialidade instrumental de Christóvam.. "So Long, Boemia" e " Sebo nas Canelas" são outras boas ideias recheadas de referências de música brasileira em um mar de blues tropical
"Mandinga" é uma estreia impressionante para uma carreira solo, mesmo que o artista em questão fosse um músico experiente. Exigente, rigoroso e criterioso, André Christóvam exibiu um vasto repertório de "truques" dentro de um perfeccionismo que definiria, mais adiante, a sua carreira.
Na busca pelo timbre exato d guitarra, ele mostrou que era possível fazer blues brasileiro com brasilidade mergulhando na realidade dos trópicos transmitindo o mesmo sentimento que é natural para os nativos de Chicago, Nova Orleans e Mississippi,
André Christóvam introjetou o blue e, de certa forma, se tornou o próprio blues no Brasil. "Mandinga" provou que existia blues de fato e bom no Brasil, assim como "Água Mineral", do Blues Etílico, que é da mesma época. O álbum é um marco na música brasileira.
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