sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A bersatilidade do jazz gaúcho de Rodrigo Nassif

Eugenio Martins Júnuor - do blog Mannish Blog

Não sei explicar, mas quando ouço a música instrumental praticada no Rio Grande do Sul, ela me soa diferente de tudo o que é produzido no resto do Brasil.

Sinto que a estrada que leva ao som dos pampas não é ensolarada como a que leva ao samba jazz e a bossa jazz do Rio de Janeiro. Talvez também não seja tão pavimentada como a que leva à diversidade de São Paulo. Muito menos com tantas bifurcações da estrada que nos leva aos estados e ritmos nordestinos.
 
As fronteiras com Argentina e Uruguai exercem mais atração sobre a cultura local do que os “ritmos brasileiros”. Confesso que preciso estudar mais sobre a música rio grandense.
 
O fato é que o Brasil é um continente e cada estado é um país, com as próprias características. E isso, por si só, já é uma maravilha.
 
Os sons criados por Renato Borghetti, Yamandu Costa, Bebe Kramer e Rodrigo Nassif conseguem explicar melhor do que eu.
 
Tô puxando essa conversa porque recentemente estive com o Rodrigo Nassif aqui em Santos. Em um show que ele fez no Sesc, na esteira do lançamento de "Estrada Nova", seu mais recente trabalho.

O vinil, gravado em Porto Alegre pelo Rodrigo Nassif Trio em 2020, tem Samuel Basso (baixo), Leandro Schirmer (bateria) e conta com sete temas autorais. Tanto dele quanto de seus colaboradores. O show de Santos teve outro baixista, o Juliano Pereira.
 
Rodrigo migrou da estridência da guitarra elétrica para as cordas de nylon e desde então se dedica a contar histórias sem palavras. Explico.
 
Muito da sua música é baseada ou influenciada pela literatura, como ele mesmo explica na entrevista abaixo. Além de Estrada Nova, título extraído da obra de Ciro Martins; encontramos Balada De Los Buendia e Cia do Caribe, homenagem ao Gabriel Garcia Marquez; Blimundiando (Saramago) e Milonga Borgeana (você sabe quem).

A discografia se completa com "Todos os Dias Serão Outono" (2015), "Rupestre do Futuro" (2017) e "Janelas Abert"as (2018).

Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical?

RN –
Bastante música em casa. Meu pai tocou clarinete e minha mãe cantou em coral. Na família da minha mãe todos tocavam instrumentos. Mas acho que a pessoa que mais me levou para a musicalidade foi meu irmão que era um cara muito roqueiro. Ele mostrava os nomes dos instrumentistas quando eu tinha cinco ou seis anos de idade. Mostrava bandas como The Who, já era adolescente, tinha dez anos a mais do que eu. Quando eu tinha cindo ele já tinha quinze anos. Ele amava essas bandas de rock inglês. Acabou me influenciando muito. Foi um despertar, no sentido de saber como a coisa funcionava.

EM – E você já foi para algum instrumento?

RN – Quando comecei a tocar havia muitas bandas de rock. A gente já morava em Passo Fundo, onde a minha família mora. A ideia da gente era tocar em banda de rock. Era autodidata, mas depois de um tempo senti a necessidade de estudar.

EM – Nessa época o teu lance era guitarra elétrica?

RN – Sim, tive uma Gianini Les Paul e depois uma Fender Strato mexicana. Tenho essa guitarra até hoje lá em casa, mas é uma guitarrinha que ganhei de um amigo e tem um tempo que não uso. Ganhei uns instrumentos das pessoas, um baixo Fender e uma guitarra. Uma viola caipira. A gente vai aos lugares e as pessoas pedem para a gente levar o instrumento.

EM – E esse violão de corda de nylon, como entrou na tua vida? É uma tradição forte no Brasil, né?

RN – Sim, uma tradição forte no Brasil e muito no Rio Grande do Sul. Acredito que seja pela versatilidade que o instrumento te dá para tocar sozinho. É um instrumento que tem vários problemas e limitações de recursos. Não tem como fazer notas com muito sustain. Não tem como fazer notas com um determinado vibrato. Várias coisas te faltam.

EM – É verdade. E a guitarra já te proporciona esses recursos.

RN – A guitarra e outros instrumentos de arco, por exemplo, ou o piano. Mas o violão é um instrumento muito versátil, porque ele tem uma parte muito aguda e uma parte média e alguma coisa grave. Então ele facilita a vida do cara que quer pensar em sons simultâneos. Foi o instrumento que caiu na minha mão. E um bacharelado. Consegui me inscrever, fui bolsista, tocando diversos estilos de música para poder continuar. E depois ganhei uma bolsa de estudos para estudar na Argentina.

EM – Ia te perguntar isso. Li em uma entrevista que você cresceu em Bagé. Se escorregar você cai no Uruguai. Ali é uma região de grande profusão musical. Houve essas influências?

RN – Acredito que tem em todo o Rio Grande do Sul. Tem muita influência do rock argentino. Muita influência do (Astor) Piazzolla. Do Borguetinho, por exemplo. Você ouve nos discos, como aquele que tem Barra do Ribeiro, Sétima do Pontal. Mas não só nele, em vários compositores, como Mário Barbará e nos mais contemporâneos como o Pirisca Greco. Então tem a influência do Atahualpa Yupanqui, Eduardo Faluri, Mercedes Sosa. Todas essas pessoas. O Rio Grande do Sul fica muito à vontade em receber essa influência latina.

EM - E a Argentina onde entra? Você estudou um tempo lá, né? Passou quanto tempo?

RN – Dois anos, 2006/2007. Só estudava, o dia inteiro. Além da técnica musical, foi um período ao qual cresci muito como ser humano. Ao voltar ao Brasil lancei meu primeiro disco, que foi muito bem recebido pela crítica aqui em São Paulo. Aquela extinta revista, a Violão Pro, fez uma resenha muito generosa. O disco tinha algumas homenagens ao Gabriel Garcia Marques, que eram músicas como a Balada De Los Buendia. Antes de eu integrar um grupo.

EM - Você deu uma declaração que a cidade grande o atrapalha um pouco a fazer música. Gostaria que comentasse essa declaração.
 
RN – Muito. Na megalópole o cara tem de ter um suprimento extra de energia para fazer quatro ou cinco turnos no mesmo dia. Estudava, mas também dava aula, com várias tarefas no conservatório como bolsista e tentava ter uma vida social e conhecer um pouco da cidade. Era difícil tirar um tempo para dar uma caminhada, fazer uma atividade que fizesse bem para a cabeça. Frequentar uma megalópole é uma coisa necessária para quem é músico, mas não é obrigatória hoje em dia. A gente vive na região metropolitana de Porto Alegre, mas a gente consegue trabalhar no estado de São Paulo morando lá. Faz dez anos que venho para São Paulo com uma freqüência regular. O único período que não viemos foi na pandemia.

EM – O Brasil é um continente e o estado de São Paulo é um país. O principal lugar para a música instrumental é São Paulo?

RN – Se parar para enumerar a quantidade de apresentações que a gente fez sem ser em editais de incentivo à cultura, a maioria foi em São Paulo. Já fizemos a Casa Ema Klabin, Coreto da Bovespa, Sesc Consolação, Jazzb, uma série de locais que propicia que essa música tenha uma difusão mais ampla. Já fizemos Sesc Bauru, Piracicaba, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Taubaté, Campinas, hoje em Santos e amanhã Presidente Prudente. Tenho a minha rotina lá em Porto Alegre com o meu piá, levando na escola, essas coisas, mas viajar para cá é muito legal. Onde temos muitos encontros com o público, de maneira orgânica. Um público que cresceu de forma natural. Os músicos de São Paulo não dependem de ser chancelados pelos outros estados. A cena já se basta. Só vi isso em Nova York. Se você é bom o suficiente para uma casa te chamar é porque você já está bem para fazer outros lugares.

EM - Gostaria que falasse sobre o músico que se banca.

RN – Essa situação é no mundo todo. Ouço muita queixa também dos mais ricos (risos). Sou muito satisfeito com minha profissão. Acho que é uma coisa muito boa para a saúde mental. Acabei virando músico porque na minha adolescência mantinha a minha saúde mental. Vou te dar um exemplo. Na quinta-feira o nosso vôo estava atrasado e não sabíamos se iríamos conseguir pegar outro vôo depois. E para segurar a ansiedade o que eu fui fazer? Tocar, claro. Nem vi o tempo passar. É uma maneira de se manter saudável, e isso pra mim é importante.

EM – Gostaria que comentasse esse novo trabalho, o álbum "Estrada Nova" que, em minha opinião, leva para várias estradas.

RN – O disco foi composto a partir d4 dia 8 de maio de 2020, quando decretaram a primeira quarentena por causa da Covid-19. Estava com a cabeça fervendo, de bobeira em casa, não queria ficar parado. Fiz um projeto chamado "Live Todo Dia" em uma dessas plataformas de financiamento online e prometi 60 lives consecutivas onde iria compor ao vivo. Aí foi a oficina do capeta. Nunca deveria ter prometido 60 lives. Se eu soubesse o quanto cansava, que o vizinho podia bater na porta, o gato podia derrubar o celular, enfim. Foi um troço cansativo, mas consegui compor quase todo o disco. A pandemia demorou e resolvi fazer um segundo projeto que era o de registrar as músicas. O Leandro Schirmer é o feliz proprietário do estúdio Panamá, em Porto Alegre, onde gravamos ao vivo o disco inteiro em dois dias. Fizemos em várias salas para que não houvesse o contato entre as pessoas. O nome "Estrada Nova" é por conta de um livro do Ciro Martins que eu estava lendo na época, que fala sobre o êxodo rural no Rio Grande do Sul. Um pouco a história da minha vida, né? De estar em movimento para continuar trabalhando.

EM – Então você não pode ler um livro que já quer gravar um disco?

RN – Com certeza. (risos). Nem me considero um leitor tão aficionado. Mas coloca aí na conta que eu leio 100 páginas por mês, num ano fraco dá 1.200 páginas. Durante trinta anos de leitura dá muita página.

EM - Gostaria que falasse sobre os teus dois parceiros.

RN – A parceria musical com o Schirmer tem mais de 10 anos. Comigo ele começou a tocar percussão. Fizemos algumas experiências, várias formações, mas acabamos nessa que é violão, baixo e bateria. No final do ano passado assisti outra banda lá do Rio Grande do Sul com o Juliano Pereira e o Leandro, achei que tinha o peso necessário para o nosso trio e como eles já tocavam juntos, o convite surgiu naturalmente.

EM – Certa vez você declarou que as pessoas não vivem sem música. Durante a pandemia, público e artistas ficaram reclusos e se virando como podiam. E recentemente os artistas daquela parte do Rio Grande do Sul que foi inundada vão passar por um período sem shows até a recuperação do estado. Gostaria que falasse sobre isso.

RN – Está uma dificuldade seríssima. Mas o período da pandemia nos deixou uma lição, a de que pouca coisa na vida é intransponível. Acredito que a classe artística do Rio Grande do Sul vai saber se unir nesse momento. Nunca foi tranqüilo ser gaúcho. Na história sempre tivemos perrengue. É a primeira vez que o Rio Grande do Sul fecha cem anos sem nenhum conflito fraticida, sabia? O último conflito que houve no Rio Grande do Sul foi em 1923. Antes foi em 1875. E antes em 1835. E antes as guerras guaraníticas. Vai contando. E nenhuma teve um intervalo de três gerações. Isso explica muito a personalidade do gaúcho. Em traços gerais a cultura local carrega algumas coisas distintas, por exemplo, esse negócio aguerrido da cultura. Então acredito que a gente vai passar por essa.

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