No famoso livro infantil 'the Iron Man",(O Homem de Ferro) de Ted Hughes, um vilarejo, do nada, é obrigado enfrentar um monstro gigante de aço de que devora tudo, principalmente o que contém ferro. Incapazes de combat^-lo, os moradores fogem, menos um garoto solitário que finge não ter medo. Afinal, o que poderia ser pior em sua vidinha miserável?
Depois de ver incrédulo o garoto desafiá-lo, o monstro percebe o que nenhum humano tinha percebido: os dois são vítimas de um mundo feio e perverso, que odeia o diferente e que tem medo de mudanças. E então uma improvável amizade surge. O livro foi transformando em ópera-rock por Pete Townshend, guitarrista de The Who, em 1989.
O monstro de aço pode perfeitamente seer um alter ego do cantor irlandês Van Morrison, o ogro gentil capa de comportamentos mercuriais e incendiários em um momento ara, tempos depois, mergulhar na suavidade e na delicadeza. Um homem rude e áspero que, quando se preocupa apenas em fazer arte, mostra o melhor de si e do ser humano.
Não foi ele que se aliou a Eric Clapton na "luta' contra as medidas de isolamento social na Inglaterra na pandemia de covi-19 e contra a obrigatoriedade de vacinação²
Pois o mesmo Van Morrison, reconhecidamente um grande compositor e um cantor estupendo, foi capa de perpetrar a trilha sonora magistral de um filme não menos magistral, "Belfast", de 2021, do diretor irlandês Kenneth Branagh, um dos mais celebrados e premiados da atualidade. A trilha finalmente está chegando às plataformas digitais e para venda física na Europa pela segunda vez.
A delicadeza com que o cantor fez as músicas da trilha sonora, casando bem com o clima nostálgico e de reminiscências, elevou e muito a qualidade da fita. É o tipo de trabalho que é um personagem do filme tão importante quanto os humanos.
Nas mãos de um de um diretor menos talentoso e habilidoso, "Belfast" se tornaria um filme de memórias de um cineasta saudosista. Entretanto, está na mesma prateleira alta de "Cinema Paradiso", uma grande homenagem ao próprio cinema.
Se a habilidade de Branagh em tratar com leveza e suavidade a infância de um garoto de nove anos tem de ser ressaltada, seu olhar político crítico em relação ao contexto histórico do filme também surge como outro grande personagem imaterial, tão importante quanto a trilha sonora.
Branagh e Van Morrison nasceram e cresceram em Belfast, a outrora pacata e modorrenta capital da Irlanda do Norte integrada ao Reino Unido desde o século XIV; A paz desapareceu em 1967, quando jovens radicais da vizinha República da Irlanda ressuscitaram o IRA (Exército Republicano Irlandês, em em sigila em inglês), organização política fundamental para a independência do país ocorrida de fato em 1922.
Os radicais republicanos, católicos, resgataram o orgulho nacional ao exigir a reintegração das seis províncias do norte da ilha da Irlanda ("Ulster", em inglês, mas palavra de origem gaélica), de população majoritariamente protestante de ascendência inglesa e escocesa , que sempre se sentiu parte do Reino Unido.
Diante das dificuldade políticas, o IRA insuflou a formação de milícias católicas em bolsões da Irlanda do Norte e partiu para as práticas terroristas. Estima-se que mais de 5 mil pessoas tenham morrido em 30anos de conflito - e pensar que, por ano, 60 mil pessoas são assassinadas no Brasil...
Entre 1969 e 1975, as ruas de Belfast, uma cidade que na época tinha o tamanho de uma Araraquara ou de uma Bauru, foram palco da maior guerra civil urbana dos anos 70, onde as crianças não eram poupadas de massacres e de explosões de bombas.
Esse é o contexto histórico do filme, que se passa no verão de 1969, quando Branagh era uma criança de nove anos - o personagem principal é interpretado pelo menino Jude Hill, que foi muito bem - enquanto que Morrison já era músico profissional desiludido aos 24 anos com o efêmero sucesso de sua banda, Them. De volta a sua cidade depois de temporadas na Inglaterra, foi testemunha dos horrores da guerra civil em Belfast.
O filme faz questão de equilibrar a inocência da infância de crianças típicas da classe média baixa operária irlandesa - o ambiente escolar, as partidas de futebol na rua, os idosos sentados na porta de casa, aos domingos, tomando cerveja e falando mal da vizinhança -com o ressurgimento súbito da violência sectária político-religiosa.
Em época de crise econômica no Reino Unido, o pai ausente de Buddy trabalha na Inglaterra e visita a família a cada duas semanas - e vê sua família ameaçada por não querer fazer parte das milícias protestantes que atacam os católicos nos bairros da redondeza.
A trilha sonora pungente também retrata o fim da mesma inocência naquela vidinha pacata e medíocre abalada pela guerra civil e pela morte dolorosa do amado avô paterno.
O dilema surge: abandonar Belfast para trabalhar e viver em um subúrbio de Londres ou se arriscar a ser vítima de um vizinho radical que não aceita a isenção político-religiosa? Não poderia haver voz mais eloquente do qu a de Van Morrison para ilustrar como o mundo era bem difícil na época naquela parte do mundo..
Belfast é um dos grandes filmes do nosso tempo e é perfeito na conexão entre trilha sonora e o drama cotidiano dos personagens. Os atores premiadíssimos Judi Dench e Ciaran Hinds interpretam os avôs paternos do garoto.. Música maravilhosa para um filme colossal,
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