Marcelo Moreira
O começo do fim do mundo ocorreu na Vila Carolina, zona norte de São Paulo, em 1981, muito antes do evento que ficou conhecido por essa expressão um ano e meio depois, no Sesc Pompeia. E, no fim do mundo e naquele não tão fim de mundo, um nome chama a atenção como o "cara do movimento".
Clemente Nascimento carrega a história do punk paulistano-brasileiro e tem orgulho de dizer que é punk e que foi punk muito antes do punk surgir nas terras tropicais. Não se sente à vontade com os epítetos de "o rosto do punk nacional" ou "essência do punk paulistano". Ele quer ser apenas o Clemente dos Inocentes e também da Plebe Rude.
São 40 anos de história de uma banda que se mantém underground e muito relevante. Inocentes são a banda punk por excelência, o símbolo de uma geração que ousou botar para quebrar em plena ditadura militar de forma muito urgente, rápida, barulhenta e visceral.
Dá para imaginar o punk brasileiro sem os Inocentes, sem Clemente e sem as turmas da Vila Carolina e do bairro do Limão?
A banda se prepara para uma série de eventos que pretendem lembrar a importância da data. Se os punks ingleses, em média, cinco anos em suas bandas, o que dizer dos 40 dos Inocentes? A contragosto, o grupo e seu líder se tornaram "instituições", algo que eles sempre combateram.
Além dos esperados shows que em breve deverão voltar, uma edição comemorativa de "Pânico em SP", que completa 35 anos de seu lançamento, será editada provavelmente com algum bônus e material extra.
Com uma trajetória intimamente ligada à cultura da cidade de São Paulo, Clemente é uma usina de energia: incansável, hiperativo e intenso, divide-se entre as bandas Inocentes e Plebe Rude, carreira solo e a apresentação de programas de rádio, mas tudo isso parece não ser suficiente.
Clemente não gosta de ser retratado como um dos líderes dos punks paulistanos, embora não desminta e desestimule tais afirmações, o fato é que o guitarrista dos Inocentes é provavelmente o mais articulado dos pioneiros. Se João Gordo, dos Ratos de Porão, se tornou a figura mais icônica, Clemente aparece como a voz mais engajada.
Garoto da zona norte de São Paulo, filho de uma família da classe trabalhadora, descobriu logo a sua vocação quando entendeu o que significava a música feroz e barulhenta que alguns ingleses tinham começado a fazer anos antes.
Não era um desajustado no sentido clássico, mas logo se mostrou um rebelde e revoltado, ganhando o respeito de toda uma nascente cena jovem que tentava bagunçar os estertores do regime militar brasileiro, iniciado em 1964.
O livro "Meninos em Fúria", que coescreveu com o escritor Marcelo Rubens Paiva, é revelador ao mostrar como os Inocentes conduziram a galera para o confronto e o embate com sua guitarra massacrante – e, em algumas vezes, também com os punhos, em várias das tretas que se envolveu ao longo da primeira metade dos anos 80.
O texto de Paiva, que conviveu com os punks na época e conheceu desde cedo o músico, é leve e ligeiro, sem arroubos ou rebuscamento – como deve ser um bom livro "punk".
Para quem gosta de rock nacional e gosta de se informar sobre a história da música brasileira e de seus principais personagens, "Meninos em Fúria" é documento importante, pois não só recupera boas histórias que sempre estiveram esparsas sobre o movimento, como também traz fatos inéditos e um olhar analítico bastante acurado.
Clemente já foi acusado de querer intelectualizar o punk nacional e de querer se apropriar da própria cena e de seu desenvolvimento. Ao escutar esse tipo de coisas, apenas ri dessas bobagens. Sua trajetória fala por si.
Em uma entrevista ao jornal O Globo anos atrás, o músico paulista fez uma breve comparação a respeito do engajamento da juventude da atualidade e o que ocorre nestes tempos: "Há um acirramento dos conflitos, e isso vem de 2013. Na nossa época, lá nos anos 80, tudo era mais claro, o Brasil vivia sob o regime militar. Agora tudo é mais confuso. Existem ações da Justiça e do Estado que são coincidentes com algumas da ditadura. O espírito da garotada de hoje ainda é jovem, de querer mudar e não se entregar, de lutar por aquilo que acha certo. Eles têm o mesmo romantismo e esperança que nós tínhamos."
Punk na essência, Clemente é um contestador, mas esbanja otimismo com visão crítica, ferina e certeira da realidade. É um artista que continua fundamental 40 anos depois de colocar os Inocentes na rota da imortalidade.
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