Marcelo Moreira
E no meio do caminho tinha uma pandemia. Se não bastassem as contendas intermináveis a respeito de política polarizada, o vírus tratou de aumentar ainda mais abismos por conta de diferenças inconciliáveis, tratando de colocar alvos nos peitos e rótulos na testa.
Se os apoios a políticas fascistas e de depredação de direitos por parte do governo nefasto do nefasto Jair Bolsonaro ajudaram a afastar amigos e parentes, os comportamentos diante da pandemia de covid-19 sepultaram de vez as chances de reaproximação.
Mais de 30 anos após o seu desmoronamento, o comunismo ressurge para virar argumento político em questões de sanitarismo e de preservação da vida.
João Doria (PSDB), governador de São Paulo, multimilionário e um expoente da nova elite político-financeira do Estado, virou "comunista" por se adiantar e buscar a vacina que ainda nem existia e por tomar medidas de isolamento social para conter a pandemia.
Eduardo Leite (PSDB), ainda mais à direita do que Doria, tornou-se um "maldito vermelho" por tentar, até agora, peitar os empresários gaúchos e manter algumas das mais drásticas e restritivas medidas de isolamento social.
Os cães hidrófobos da direita, arautos do balsonarismo que flertam todos os dias com o fascismo e com o autoritarismo, invocam a liberdade que tanto gostam de massacrar para sabotar as medidas sanitárias de contenção do vírus. ]
A chamada liberdade econômica não resiste a três segundos de argumentação, mas os indigente intelectuais da extrema direita insistem na tese de que haverá fome e quebradeira com a persistência de vários lockdowns. Vírus? Mas que vírus? Morreram quantos mesmo?
Com as máscaras caindo o desespero tomando conta do bolsonarismo burro e incompetente, resta apenas o choro deslavado de gente insensível e sem empatia, para não falar da incapacidade de entender o que acontece ao redor.
Sem máscaras e muletas, toda a indigência intelectual e cultural de parte expressiva do meio musical brasileiro - fãs e artistas - fica exposta diante do falso liberalismo que essa gente defendia entre a baba raivosa e o ódio dilacerante.
Em vez de culpar o vírus e lutar contra ele, as armas foram apontadas para quem ao menos tenta fazer alguma coisa, entre avanços e recuos de medidas restritivas e entre mil esforços para levar informação ao povo e disseminar orientações científicas de prevenção.
Em um post vergonhoso de um conhecido baterista de heavy metal brasileiro, houve apoio explícito a manifestantes contrários da João Doria, xingado e atacado por fazer aquilo que deve fazer - combater a pandemia com as medidas necessárias, sempre com o apoio da ciência.
Capa de 'Avalon', do Roxy Msic: que o horizonte seja mais limpo e aberto para que sigamos em frente, mas sem o mundo tóxico que empesteia os nosso ambientes na atualidade |
Assim como o baterista, seus apoiadores e fãs espumavam de raiva contra a "cassação do direito de ir e vir e da retirada do direito das pessoas de trabalhar e ganhar o sustento".
Os argumentos contra as restrições são estúpidos, para variar - é como se não houvesse pandemia e que tudo não passa de "vontade política" de governantes mal intencionados. Ora, esse tipo de pensamento é tão primário quanto considerar um cidadão como João Doria um comunista desde sempre.
Esses neoextremistas de direita, com opiniões terraplanistas rasas como um pires de café, ainda têm a capacidade, sem enrubescer de vergonha, de contestar os dados de superlotação de UTIs de hospitais no país inteiro, levantando hipóteses conspiracionistas de que há um movimento orquestrado para desacreditar o governo federal refém de governadores oportunistas - um movimento que uniria governadores petistas, bolsonaristas e tucanos como Doria e Leite.
Os tempos bolsonaristas fraturados alargam não só o fosso político por conta da polarização extrema, mas também por conta de uma constatação evidente: a depredação moral que parte que sai da direita, exaltando o mau caratismo em que chafurda fartamente, fazendo questão de deixar clara a desonestidade intelectual e a má fé.
É dessa forma que não há como recomeçar do zero ou voltar a um estágio pré-Bolsonaro ou pré-Michel Temer. Diante de fartas exibições de namoro com o fascismo e de apoio a um conservadorismo medieval que fere direitos humanos, não há como tolerar aquele tio racista e preconceituoso que diz que "bandido bom é bandido morto". Não dá para olhar na cara da avó que fala na cara que "não gosta de preto".
Como será possível sentar no bar e conversar com o seu padrinho de casamento que diz que medidas de distanciamento social é coisa de "comunista" e que os números de mortos pela pandemia são mentirosos?
Como será participar do aniversário da sobrinha, naquele churrasco, em que o irmão do cunhado, sóbrio, fala que liberdade de expressão é coisa de esquerdista, que mulher tem que apanhar mesmo e que políticas de meio ambiente atrapalham o progresso?
Como se comportar diante do vizinho que acha que professor não pode ensinar nada que seja "comunista", que vomita porcarias sobre a Escola Sem e que despreza os problemas de trabalhadores diversos em tempos de pandemia?
Como subir no elevador com esse dejeto humano sabendo que ele vomita contra a corrupção, que o Lula roubou tudo mesmo saber exatamente o porquê de sua prisão, mas que não paga condomínio há quase um ano, período em que trocou de carro e pagou viagem à Disney par a filhota?
Todos esses energúmenos são os mais legítimos representantes do mundo liberal anticorrupção e a favor da total liberdade, desde que não mexa com seus negócios, que não deixem o PT ganhar e que faça vistas grossas às suas falcatruas - que vão de não pagar condomínio, sonegar impostos, lesar direitos trabalhistas, buscar uma forma corrupta de não pagar multas, a subornar policiais e participar de licitações fraudulentas. São os típicos direitistas-bolsolixos-liberais de fossa.
Do ponto de vista pessoal, para muita gente, ao menos, a pandemia forneceu o motivo esperado para uma verdadeira faxina nos relacionamentos.
O vírus, ao lado do bolsonarismo de inspiração fascista, estimulou a higienização de nosso cotidiano, extirpando esse tipo de gente nefasta que torce pelo pior e a favor da violência, do preconceito e dos privilégios seculares da elite branca conservadora.
É revigorante riscar da lista de telefones e dos contatos das redes sociais aquela gente parasita, indigente intelectual e simplesmente burra que atenta contra a inteligência, contra o conhecimento.
É saudável banir aquele primo, irmão, tio, amigo, vizinho ou colega de trabalho que torce pelas trevas, que anseia pelo retrocesso e que apoia comportamentos que, em última instância, se reverterá contra pessoas que advogam qualquer tipo de progressismo - ou de bom senso, ou de vida inteligente.
Eu, como jornalista, tive certa paciência ao tentar explicar para alguns imbecis enfeitiçados pelas trevas bolsonaristas, que votar no protofascismo seria, em tese, colocar a minha vida em risco - e a vida de quase todos os jornalistas, professores, intelectuais, artistas ou qualquer ser inteligente e atento que ouse contestar ou questionar um governo de viés autoritário- que certamente evoluiria para uma ditadura.
Mais do que o apoio declarado ao protofascismo, o que chocou nestes casos foi a reação dos ouvintes - profundo desprezo pela democracia, pelas liberdades de expressão, opinião e de imprensa, tudo acompanhado por toda a sorte de preconceitos, ódio sem explicação e extrema ignorância.
Quando notei que essa gente que conviveu ou convivia comigo por décadas professava tamanho menosprezo pela vida e pelo conhecimento é que tive uma primeira noção da extrema largura do abismo que se abria em relação a toda essa gente.
Nestes tempos fraturados, a higienização moral e mental se faz necessária. Claro que nada será como antes, já que a pandemia alterou tudo, do nosso cotidiano ao nosso processo mental de lidar com restrições.
Dentro dessas mudanças, o afastamento de pessoas nocivas é o começo de uma nova era pessoal para todas as pessoas que prezam as boas práticas de respeito ao próximo, que valorizam o conhecimento e os direitos humanos.
O amanhã que tanto ansiamos talvez não seja tão bom e inocente quanto aquele passado que a polarização política e a pandemia deixaram para trás. Mas será, de alguma forma, melhor em termos de humanidade e cotidiano menos tóxico.
Será mais saudável voltar a frequentar um show de rock sem o o amigo fascista enrustido que odiou descobrir as "letras políticas de Roger Waters"; será mais gostoso e menos nocivo retornar às arquibancadas dos estádios sem colega medieval racista e preconceituoso que tanto nos envergonhou por anos. Esse amanhã parece que nunca chegará, mas vai chegar. Tem de chegar.
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