Uma personalidade em constante conflito que achou a paz e o sucesso no blues, em um retorno oportunista, mas totalmente coerente com a sua trajetória. E assim Gary Moore se tornou gigante, ganhando o respeito do grande público.
Morto há 12 anos, o guitarrista irlandês nunca escondeu que tinha o objetivo de se ombrear em idolatria ao amigo e parceiro Phil Lynnot, baixista do Thin Lizzy que morreu em 1986 e que ganhou uma estátua m um cruzamento importante em Dublin, a capital da República da Irlanda. Será que Moore conseguiria o mesmo na sua amada e tempestuosa Belfast, capital da Irlanda do Norte?
Mais tentativas estão sendo feitas agora com a reedição de parte de sua discografia, com álbuns remastrizados e remixados, tanto em edições americanas como japonesas.
Quando dos dez anos de sua morte, em 2021, os CDs da fase de blues, a partir de 1991, tinham sido reeditados no mesmo processo.
Agora é a vez da fase hard rock, que engloba os anos 80, época em que Moore ensaiava se tornar o grande guitar hero do rock internacional. ele quase conseguiu, mas teve de esperar por mais dez anos até virar um astro mundial pelas ondas e notas do blues.
Depois idas e vindas com o Thin Lizzy e o Colosseum II nos anos 70, parecia que a carreira solo ia engatar a partir de 1980, com o o razoável disco "G-Force". Sua banda era boa e ele crescia em prestígio até que "emprestou" a banda seus serviços para a carreira solo de Greg Lake, da então extinta Emerson, Lake & Palmer.
Com a veia bluesy explodindo, tornou-se o guitarrista mais incensado da época, rivalizando em sucesso com Eddie Van Halen e Randy Rhoads, da banda de Ozzy Osbourne.
A sequência de álbuns de rock pesado foi fulminante, incluindo os discos "Victim of Future", "Run For Cover", "After the War", "Wild Frontier" e Corridors of Power", além dos ao vivo energéticos e vigorosos "Live at Marque 1981", "Rockin' Every Night" e "W Want Moore".
Curiosamente, os discos eram cada vez melhores, mas as vendas não avançavam, e então alguém achou que ele estava ultrapassado, que o som dele era datado e que ninguém mais queria saber de canções ao estilo "Led Zeppelin e Deep Purple".
Azar de quem pensou dessa forma, pois são trabalhos ótimos. "Run For Cover", de 1985, por exemplo, contou com as participações Phil Lynnot, o amigo de toda a vida que era o baixista, vocalista e dono do Thin Lizzy e o baixista e vocalista Glenn Hughes, ex-Deep Purple. O mestre baterista Ian Paice - na época já de volta ao Deep Purple, teve de recusar a proposta de gravar.
Hughes, debilitado pelo excesso em drogas e álcool, fez ainda assim o excelente trabalho cantando e tocando baixo, e Moore estava no auge de sua habilidade técnica.
"After the War", de 1989, incorpora elementos de música celta e irlandesa, como nas emocionantes duas partes de "Dunluce". O som estava cada vez mais pesado e agressivo, e o time reunido para gravar era estelar: Ozzy Osbourne (então ex-Black Sabbath) nos vocais em 'Led Clones", os fantásticos Simon Phillips e Cozy Powell na bateria, Don Airey (futuro Deep Purple) nos teclados, Laurence Cottle (então no Black Sabbath) no baixo, Brian Downey (ex-Thin Lizzy) na bateria, a cantora Sam Brown nos vocais de apoio...
Como as vendas não foram as que ele esperavam não perdeu tempo e tomou um novo rumo na carreira a partir de 1990 e ganhou as emissoras de rádio de todo o mundo. A fase roqueira pesada, entretanto, reserva ótimas surpresas para quem não conhece e tem interesse em revisitar os dez CDs do pacote de relançamento.
Rock e blues no sangue
Talvez seja cedo para saber se um dia Gary Moore ganhará uma estátua em sua Belfast ou na não muito distante Dublin, do outro lado da fronteira, mas o irascível, genioso e talentoso guitarrista atingiu os maiores objetivos traçados ainda nos anos 70: fazer sucesso e ganhar dinheiro, ainda que suas passagens por Skid Row, Colosseum II e Thin Lizzy não indicassem um caminho para o estrelato.
Ele já estava chegando aos 40 anos de idade com a pecha de instrumentista subestimado e injustiçado pelo talento imenso que esbanjava.
A carreira solo bem-sucedida era um alento, mas ele queria mais. Era ídolo de mita gente que curtia o seu rock pesado e intenso, seus solos incandescentes e sua força invejável, mas parecia que faltava algo.
Então ele redescobriu o blues e virou astro internacional, a ponto de sua música "Still Got the Blues", também título de um álbum, incomodar por sua massiva execução nas rádios, da mesma forma que a versão da canção de Natal de John Lennon na voz de Simone.
As críticas de oportunismo o machucaram, mas também o fortaleceram a ponto de seguir em frente e desfrutar o sucesso blueseiro tardio. Mas, para GaryMoore, parecia que sempre faltava algo.
As coisas nunca foram fáceis para o garoto que cresceu na melancólica e bucólica Belfast, que se tornaria um campo de guerra no final dos anos 60 pelo renascimento do nacionalismo católico irlandês na parte norte da ilha, vinculada ao Reino Unido e dominada por uma população protestante.
Os católicos, em minoria nos seis condados da Irlanda do Norte, mas apoiados pela imensa maioria da população da vizinha do sul, a República da Irlanda, se cansaram da discriminação e do ódio a que eram submetidos e insuflaram a volta do nacionalismo, que resultou na independência do sul, em 1922.
O rompimento total com o Reino Unido em 1949, quando da retirada da Comunidade Britânica de Nações, pressupunha tempos difíceis, e quase ninguém deu ouvidos em Dublin e em Londres, naqueles anos 60, que Belfast e Londonderry, outra cidade norte-irlandesa, eram barris de pólvora prestes a explodir.
E explodiram na segunda metade dos anos 60. O ressurgimento do IRA (Exército Republicano Irlandês), entidade fundamental para a campanha de independência entre 1916 e 1922, foi o ponto de partida para a "defesa dos católicos nacionalistas da Irlanda do Norte contra os unionistas e monarquistas partidários da Rainha".
Violência e terror
Esse pano de fundo, na verdade escondia o desejo de todos os católicos irlandeses, que era unificação da ilha e a progressiva expulsão dos protestantes para a Grã-Bretanha.
Terrorismo e violência passaram a ser sinônimo de Belfast naqueles tempos sombrios em que um jovem guitarrista precisava peregrinar entre as duas capitis irlandesas para tocar seu instrumento e fazer o seu rock and roll.
E todo esse clima bélico e pesado está impregnado em sua música desde sempre, do começo do blues nos anos 60, passando pelo Skid Row, pelo Thin Lizzy, pelo Colosseum II e pela furiosa carreira solo do começo dos anos 80, quando abraçou o hard rock e finalmente começou a ser reconhecido como um guitar hero.
Moore pode ter sido subestimado até certo ponto, e conseguido um sucesso tardio por meio do blues, mas é inegável que sua paixão pela guitarra impactava todo mundo e despertava muita admiração.
Idolatrado por uns, invejado por outros, era um guitarrista da estirpe de Frank Zappa, Yngwie Malmsteen, Ritchie Blackmore e mais alguns outros no quesito impacto: ninguém consegue ficar indiferente ao peso de sua guitarra e do seu característico timbre bluesy.
Doze anos sem Gary Moore é muito tempo. Como tantos e tantos outros, faz bastante falta. Morreu aos 58 anos de idade, de ataque cardíaco, justamente quando parecia que iria finalmente aproveitar a vida e tirar o pé do acelerador.
Pouca gente lembra que um dos maiores feitos do músico foi promover uma completa e instigante união entre os músicos irlandeses, a ponto de um filho de Belfast ser o nome principal da homenagem feita a Lynnot (morto em 1986) em Dublin quando da inauguração da estátua representando o amigo.
Moore sonhava com uma Irlanda unida ao menos culturalmente, em que religião e política não fossem suficientes para separar os roqueiros e os adeptos da música tradicional gaélico-irlandesa.
Até certo ponto, ele conseguiu manter as barreiras no chão, coisa que nem mesmo a saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit) - a República da Irlanda continuará no bloco - será capaz de reverter. Não é pouca coisa.
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