Em um mundo com as vozes de trovão de um Frank Sinatra ou Tony Bennett, para não falar na suavidade e delicadeza de Nat King Cole, quem se daria ao trabalho de prestar a atenção a uma voz apenas firme, mas hesitante e sem floreios?
Pelo menos um milhão de pessoas decidiram apostar na voz de Harry Belafonte e lhe deram a primazia de ser o primeiro artista a vender mais de um milhão de cópias de um único álbum - além de poder dar um "tapa na cara" dos branquelos italianados Sinatra e Bennett, os preferidos da mídia e do mundo branco.
Belafonte, cantor de bons recursos e ótimo ator, foi o primeiro artista negro a romper as barreiras impostas pelo racismo e pelas finanças pessoais e invadiu o mundo das celebridades.
Respeitado e admirado, não teve medo de ousar e ir além, tornando-se sinônimo de ativismo político e social em uma América inconformada com as reivindicações de cidadania e direitos civis das minorias - negros, hispânicos e asiáticos. Usou o fato de ser uma celebridade para financiar diversas causas e se tornar uma lenda entre os artistas engajados.
Morto aos 96 anos nesta semana, ator e cantor era imponente por seu porte físico, que enganava interlocutores que não imaginava a doçura e a delicadeza com que Belafonte se colocava em todos os assuntos. Delicadeza que jamais era confundida com falta de firmeza - que o digam os parlamentares americanos que tinham a difícil missão de enfrentá-lo em um debate...
Filho de imigrantes caribenhos, gostava de se definir como uma autêntica cara de sua Nova York natal, difusa, diversa, diversificada e plural, ainda que nem sempre acolhedora e benevolente com as classes menos abastadas.
E foi nas áreas mais carentes de sua cidade que ele despertou para o ativismo político, numa igreja batista do bairro negro do Harlem. Já era um ator respeitado, mas não um astro quando conheceu o pastor Martin Luther King, este ainda jovem e cheio de energia.
O impacto do encontro foi tão grande que Belafonte, mesmo sem ser religioso, aderiu às causas de King e se tornou um parceiro dele por toda a vida, devotando muito de celebridade e parte de seu dinheiro a ajudar a difundir e defender os direitos civis. Financiou um generoso plano de seguro pessoal ao amigo - cuja família iria precisar depois que o pastor foi assassinado em abril de 1968.
Um dos pontos altos de sua carreira na música, foi o sucesso do álbum "Calypso", o terceiro de sua discografia, que se tornou o primeiro trabalho na indústria norte-americana a vender mais de 1 milhão de cópias e conquistar o primeiro disco de ouro no país.
É neste disco que se encontra o clássico "Day-O (The Banana Boat Song)", inspirada em uma melodia popular da Jamaica. Ainda que a canção fosse dançante, seu teor era voltado para a rebelião dos trabalhadores que desejavam justiça aos salários pagos na época.
Em uma recente entrevista para uma emissora de TV americana, na saída da cerimônia de um prêmio da indústria musical, Belafonte disse qual era a motivação e o legado que queria deixar no mundo do entretenimento: "Justiça", disse o ator, de forma sucinta, referindo-se à questão socioeconômica de parte da população norte-americana.
"Quando as pessoas pensam em ativismo, sempre pensam que há algum sacrifício envolvido, mas sempre considerei isso um privilégio e uma oportunidade", disse durante um discurso na Universidade Emory, em 2004.
Artista inigualável e uma personalidade fascinante, foi um gigante em todos os sentidos e uma das figuras humanas mais importantes do nosso tempo.
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