O rock virou coisa de família, bem comportado e nem um pouco ameaçador. Por conta disso, não ésurpresa que tenha virado coisa de gente conservadora, pouco afeita a mudanças e inovações. A sensação é essa já faz algum tempo, mas foi verbalizada por dois músicos importantes que estão bem ativos e com trabalhos novos.
Bruce Dickinson, cantor do Iron Maiden, e Rafael Bittencourt, guitarrista e fundador do Angra, admitem que o gênero perdeu vigor e encontra dificuldade de falar com pessoas mais jovens, hoje bombardeadas por muita informação e músicas de gêneros mais populares, como hip hop, rhythm & blues americano, sertanejo e funk carioca.
O inglês Dicjinson, à beira dos 67 anos de idade, não pestanejou em admitir que artistas e sua geração, com mais de 45 anos de estrada, tendem a se tornar mais reservado e conservadores na hora de aprumar suas carreiras. Entende quando bandas e artistas veteranos optam por um caminho mais fácil e mais seguro, sem tanta ousadia.
Em recente entrevista á revista IstoÉ, falou sobre seu novo álbum solo, "The Mandrake Project", provavelmente o seu melhor trabalho individual, e comentou sobre o risco que muitos artistas correm na busca por uma excelência artística em tempos onde o público não valoriza tal iniciativa.
"Os tempos são outros, a música não tem mais aquela aura sagrada e os artistas não são mais os heróis de outrora. Eu sempre venerei Ian Gillan, do Deep Purple, e Steve Harris [baixista e companheiro no Iron Maiden] adora Phil Lynott, do Thi n Lizzy. Hoje os ouvintes não se importam mais com esse tipo de informação", diz o cantor.
O brasileiro Bittencourt, de 52 anos, fez uma observação curiosa em uma entrevista para a revista Roadie Crew; Tem percebido que cada vez mais gente hoje ouve rock em família, na sala de casa ou no quarto de um dos filhos. É uma experiência que ajuda a conectar pais e filhos, indo contra a ideia de que o rock, como seu histórico de contestação, opunha gerações e causava fissuras familiares.
Ele não entrou no mérito se isso é bom ou ruim, preferindo apenas constatar a particularidade, mas cita essa situação como exemplo de coo os tempos mudaram e tornaram o rock, em termos de coportamento, menos perigoso e mais conservador.Bittencourt e seu Angra estão promovendo o ótimo álbum "Cycles of Pain"', lançado no ano passado.
As duas observações sacramentam as impressões que jornalistas, historiadores e músicos têm do rock ao longo das últimas três décadas: o rock perde espaço progressivamente e foi o gênero que maia sofreu com a derrocada da indústria fonográfica tradicional, soterrada pela pirataria e pelas plataformas de streaming - que provocaram mudanças radicas nos hábitos culturais no mundo todo.
Mauricio Gaia, jornalista, publicitário, arguto analista cultural e integrante do Combate Rock, há temos observa que o rock deixou de causar impacto na juventude deste século. defende com propriedade que o rock, tanto no Brasil como no mundo, não fala mais a linguagem da juventude. Ficou arrogante, pedante e distante do universo real da grandes metrópoles.
Gaia também apresenta no YouTube o videocast "AltCast", dedicado a falar sobre música alternativa e seus cenários. Aborda constantemente esse assunto com os seus entrevistados. Seu companheiro de bancada nas entrevistas é o guitarrista José Antonio Algodoal, da banda Pin Ups, e um dos curadores di In-Edit - Festival Internacional do Documentário Musical.
Uma das grandes preocupações de José Antonio é a pulverização das informações no mundo virtual da internet e com a velocidade da vida moderna, que acaba relegando a produção cultural, muitas vezes, ´para o segundo plano.
"Sinto falta hoje de uma 'curadoria' cultural, de referências que possam ajudar na triagem da avalanche de informações sem ter de depender de algoritmo e tik toks da vida",constata o músico, relembrando os tempos em que jornais, revistas e programas de rádio eram fundamentais pata disseminar informação de qualidade - e isso nem faz muito tempo, até o começo deste século era assim,,,
Tudo isso ajudar a explicar, em parte, um certo comodismo - ou preguiça - de jovens ou gente nem tão jovem a buscar pelo novo ou, ao menos, por informação de qualidade.
É um terreno fértil para a proliferação do conservadorismo. Se ampliarmos o escopo para a área político-ideológica, é campo fértil para a direita e os extremistas de cunho fascista trabalharem impunemente.
Por isso, não surpreende que muitos músicos conservadores tenham perdido a vergonha e o puder de abraçar e disseminar ideias estapafúrdias de extrema-direita, a corrente ideológica que odeia a arte, a cultura e a democracia,.
Quando o rock vira coisa de "família", para se ouvir juntinho dos filhos alguma baba de pop ou soft rock inofensiva e incapaz de fazer pensar, é sinal de que jaz na sepultura há muito tempo, como não cansa de repetir Gene Simmons, ex-baixista do Kiss, que vai fazer 75 anos.
E então vemos algumas coisas surreais e contraditórias, como um estádio cheio para ver o show dos Tiitãs na versão "Encontro", com os ex-integrantes, ma com a maioria se surpreendendo, e negativamente, com a agressividade de algumas canções, como as mais politizadas e agressivas, notadamente do álbum "Cabeça Dinossauro", de 1986. Isso, na verdade, quando conseguem entender e sacar letras como as de "Polícia" e "Igreja".
É triste ver a resignação com que Bruce Dickinson constata a falta de ambição artística e o comodismo que dominam parte dos artistas de sua geração e da que vem imediatamente anterior a dele. E não para dissociar o fato de que o "rock clássico" (classic rock) tem uma culpa grande neste caos.
Continuamos ensinando nossos filhos e netos (em alguns casos) a gostar das mesmas bandas de nossas épocas, sempre falando que "rock bom mesmo [é Led Zeppelin, Black Sabbath e Rolling Stones". é aquele velho papo saudosista de tiozão de churrasco, que adora recitar a escalação do time campeão de 1965 ou 1980, mas é incapaz de falar dois nomes do time atual.
O resultado visível disso é que proliferam as franquias de escola de música com os nomes School of Rock e Academia do Rock, onde a maioria dos alunos é formada por crianças e adolescentes ávidos por aprender a tocar "Smoke on the Water", do Deep Purple, ou cantar algo do Queen, mas são incapazes de saber onde procurar um som novo ou banda nova e qualquer subgênero do rock.
Em ótima entrevista ao programa Combate Rock, há dois anos, Fernando Quesada, ex-baixista do Shaman e Armored Dawn e CEO de conteúdo da School of Rock n Brasil, detalhou a interessante grade curricular dos cursos que a franquia oferecer no Brasil e como a pedagogia da franquia tem contribuído para fomentar a cultura roqueira.
Ele reconheceu, no entanto, que não será de forma rápida que o rock recuperará o espaço que já teve porque o rock não é um gênero nativo. E isso vai ao encontro do que artistas importantes como Clemente Nascimento, guitarrista dos Inocentes da Plebe Rude, e Nasi, vocalista do Ira!, costumam dizer em entrevistas: será que o rock hoje, no Brasil, não tem o tamanho que sempre teve ou que deveria sempre ter tido? Ou seja, será que o rock o Brasil, e no mudo, não teve um tamanho superinflado, irreal, nos anos 80 e 90?
O fato é que o rock ficou conservador na música, na arte e nos costumes. Em termos político-ideológicos, a tendência é que a direita antidemocrática e de viés autoritário-fascista ganhe daca vez mais espaço.
É uma época complicada para celebrar o rock e vislumbrar um futuro luminoso, mas é sempre vacana ver a dedicação de gente como os irmãos Andria e Ivan Busic, do Dr. Sin, e Henrique Papatella, do Scarcéus, ao manifestarem orgulho por viver de música e bradar: "rock é um estilo de vida".
Por outro lado, é instigante constatar que ainda tem músico que tem o rock como instrumento de luta e arma para reafirmar posições. João Gordo e seus Ratos de Porão, Rodrigo Lima e seu Dead Fish, Chaene da Gama e seu Black Pantera são exemplos de como o rock é fundamental para a arte engajada e ativista em um Brasil cada vez mais polarizado e ameaçado pelo fascismo e pelo ultraconservadorismo religioso e político.
Quando ouvimos essas bandas e mesmo clássicos de Raul Seixas, Titãs, Paralamas do Sucesso e Ira!, para citar apenas alguns, relembramos que o rock está em baixa, dependendo do ponto de vista, mas que ele ainda pode ser agressivo, contestador e perigoso. Pode ser um canal de revolta e da mais pura manifestação política de vigor democrático, progressista e pelos direitos humanos.
O rock ainda pode ser incômodo, insubordinado, subversivo e, por que não, repulsivo. Rock é oposição, principalmente à mesmice e ao comodismo, que fatalmente abrem caminho para o conservadorismo. Rock pe insurreição, e por isso não deixaremos que os conservadores tomem conta de tudo.
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