sexta-feira, 13 de maio de 2022

O 'caos criativo' gerou, há 50 anos, o melhor trabalho dos Rolling Stones

 Ninguém sabe bem quem criou  expressão "caos criativo". O aparente paradoxo já serviu para explicar muita coisa nesta vida na falta de argumentos sensatos e verdadeiros. Mas tem gente que jura que a expressão surgiu no sul da França, no final de 1971, mais especificamente em Nelcôte, uma propriedade na Riviera Francesa quase à beira do mar.

Foi naquele lugar que os Rolling Stones decidiram gravar, com o auxílio de sua unidade móvel, o grandioso disco que deveria mudar paradigmas no rock. Pelo menos, era o que se esperava quando a banda, funcionários, apaniguados e puxa-sacos se bandearam para a França na tentativa de pagar menos impostos.

Queriam fazer algo grandioso, mas não estavam muito dispostos a trabalhar. O verão do sul da França oferecia distrações demais, turismo demais, drogas demais, mulheres demais e interesse de menos no estúdio. Ninguém seriamente comprometido achava que sairia coisa boa dali.

Teve até casamento no meio dos trabalhos. Tudo teve de parar para que Mick Jagger e a namorada grávida, a nicaraguense Bianca Jagger, transformassem St. Tropez e na capital mundial das celebridades. Casaram-se às vistas da "realeza" do rock mundial e depois se mandaram para Paris. Trabalho?

"Exile on Main St", o álbum duplo lançado em 1972, tinha tudo para dar errado. Ou melhor, tinha tudo para não dar em nada. E quase não deu. Só que o "caos criativo", junto com a preguiça e a zona total que era a casa alugada por Keith Richards no sul francês, ajudou, e muito, a criar a melhor coisa que os Stones já fizeram.

Foi o auge criativo de uma sequência irrepreensível de discos, ue começou com "Beggar's Banquet" (1968), "Let It Bleed" (1969) e "Sticky Fingers" (1971). Sem os Beatles como concorrentes, mas assombrados pelo rock pesado de Led Zeppelin e The Who, mergulharam cada vez mais nas raízes, no blues e na simplicidade, tudo encharcado a muito álcool e muita bagunça.

O caos criativo deu origem a uma quantidade absurda de canções e praticamente forçou a edição de um LP duplo majestoso e fulgurante, variado e maravilhosamente executado. É o disco definitivo da banda.

Como nada foi planejado, é óbvio que as chances de ter um hit não era muito grandes. E realmente não teve, e não fez falta. "Rocks Off", o rock potente e esfuziante que abre o trabalho, era um candidato, mas coube à pungente quase balada soul "Tumblin' Dice", negritude até o fundo da alma, se tornar a grande música de Exile on Main St". Até hoje frequenta o repertório ao vivo da banda, praticamente a única do disco duplo.

Sem a sombra de Brian Jones, o guitarrista expulso da banda em 1969 e morto pouco tempo depois, o grupo estava pleno e formoso na sua vida hedonista de única grande banda de rock do mundo, aquela que movimentava o mundo aos seus pés.

Mick Taylor, que substituiu Jones, deu o acento blues que faltava para a banda deixar os experimentalismos de lado e tentar voltar às raízes. 

Com fraseados limpos e solos destruidores, daqueles de fazer inveja a Eric Clapton, Taylor coloriu o som rústico e ríspido dos Stones, lapidando os acordes insultuosos e insolentes de Keith Richards e fazendo a cama necessária para os devaneios vocais de Jagger.

E então surgiram maravilhas pop e rocks como "Torn and Frayed|", "Tumblin' Dice", "Rocks Off" e "Happy", o melhor trabalho vocal de Richards. Tem blues safado em "Ventilator Blues", rock pesado em "Soul Survivor", rock penetrante e envolvente em "All Down the Line", boogie woogie em "Shake Your Hips", hinos gospel em "Loving Cup" e "Shine a Light", blues rasgado em "Rip This Joint"...

O cardápio multivariado e intenso de "Exile on Main St." foi considerado anticomercial na época por não conter hits em potencial, ainda que a qualidade do material fosse reconhecida. os Stones perceberam isso na finalização do material, em um estúdio em Los Angeles, na Califórnia, mas pareciam exaustos demais com a esbórnia francesa para mudar os rumos. Gostaram do do resultado, mas não soltaram rojões. Não conseguiram ter, na época, a dimensão da excelência da obra.

Richards é sempre reverente ao falar do disco e afirmou diversas vezes que muitas das músicas ali são excelentes e representam bem o espírito dos Stones. Jagger é menos entusiasta, mas saboreia com deleite os fartos elogios.

Cinuenta anos depois do lançamento, mergulhar na história de sua elaboração é um prazer imenso que pode ser saboreado no ótimo livro "Uma Temporada no Inferno com os Rolling Stones", de Robert Greenfield, um dos muitos penetras que frequentaram Nelcôte durante parte das gravações. Ele ficou muito surpreso que algo tão grandioso pudesse ter origem em tamanha desordem e falta de "profissionalismo".

O livro é bastante saboroso e também um importante documento sobre o processo criativo de uma banda de rock e os bastidores de um gigante do entretenimento em uma época em que o mundo pop se transformava de forma definitiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário