sexta-feira, 13 de maio de 2022

Rolling Stones no banco dos réus: os 55 anos da perseguição quase fatal



Uma banda de rock em alta constante, arrogante e contestadora; uma imprensa moralista, revanchista e inescrupulosa; um sistema judiciário corroído, fraudulento e apavorado com as mudanças da sociedade.

Eis os ingrediente de uma das histórias mais nojenta envolvendo a perseguição a artistas de rock – e do entretenimento em geral. Há 55 anos, os Rolling Stones correram o risco de ter um atraso na carreira - ou até mesmo ter as atividades encerradas - por conta de processos judiciais envolvendo a posse de quantidades irrisórias de substâncias ilícitas na Inglaterra.

A saga das batalhas judiciais que quase encarceraram Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones em 1967 foi brilhantemente contada no livro "Encurralados – Os Stones no banco dos Réus", do jornalista inglês Simon Wells (edição em português pela Editora Madras).

O comportamento extravagante dos roqueiros ingleses e o avanço das drogas na Inglaterra a partir de 1965 deram aos jornais sensacionalistas de Londres – desde sempre os piores e mais abjetos do mundo – e à Scotland Yard, a polícia inglesa, os elementos necessários para iniciar uma incansável perseguição aos artistas em geral.

Era uma tentativa idiota de zelar pela "moral e bons costumes" da sociedade britânica. Mal sabiam eles que apenas contribuíram para expor a putrefação que dominava a vida inglesa na época – e ajudaram a acelerar as mudanças comportamentais do fim dos anos 60 e começo dos anos 70.

Os Rolling Stones eram o alvo principal. Rebeldes, sensuais e bocudos – ainda que com um pouco de sofisticação, o quinteto caçoava da velha vidinha inglesa e esbofeteava os conservadores com sua promiscuidade, lascívia e completo descomprometimento com o mundo burguês da época. Ironicamente, 40 anos depois, Mick Jagger, zilionário, se tornaria um dos baluartes dessa mesma vida burguesa europeia "decadente".

O recrudescimento da perseguição aos artistas coincidiu com a inundação do Reino Unido pelas drogas de todos os tipos a partir de 1963. Os Stones acabaram no centro de toda uma discussão nacional sobre consumo de drogas e comportamento dos jovens, que marcou para sempre a cultura britânica.

Festa com 'aditivos'

O estopim foi uma festa regada a drogas que Keith Richards ofereceu em sua casa em West Sussex, no início de 1967, uma propriedade chamada Redlands. Mick Jagger e sua então namorada, Marianne Faithfull, eram os convidados de honra, assim como o beatle George Harrison e sua então esposa, Patty Boyd Harrison. 

Só que a polícia também resolveu comparecer, "estimulada" por jornalistas do jornal News of the World,  criando, assim, um lendário embate. 

A batida policial gerou um frenesi na mídia, sempre sedenta por detalhes sórdidos, e deu ensejo a um confronto entre os jovens hedonistas representantes da contracultura e o establishment britânico, que tinha como intuito mostrar a força daqueles no poder. 

No entanto, o resultado foi bem diferente do esperado. O rock venceu, mas não antes correr um sério risco de "satanização" oficial em um país considerado um baluarte da democracia, da liberdade de expressão e de opinião, assim como de comportamento.

Valendo-se de documentos da polícia e do julgamento dos Stones nunca antes publicados, Simon Wells revela o que, de fato, aconteceu na noite da emboscada policial, bem como a extraordinária conspiração forjada para destruir a carreira de Jagger e Richards, além dos artifícios do establishment para tentar abarcar os Beatles e outros astros do rock em sua rede.

Documentação farta

Com entrevistas recentes realizadas com alguns dos presentes à festa, advogados, agentes de polícia e testemunhas oculares do caso, Wells mostra que o suposto confronto moral foi, na realidade, um escândalo que envolveu traficantes que forneciam seus serviços a celebridades, gângsteres londrinos, policiais a serviço do sistema e políticos de caráter duvidoso. 

O texto é sóbrio, bem escrito, mas com um viés interpretativo que contextualiza todas as circunstâncias, tornando a obra um deleite para quem gosta de história do rock e boas reportagens. 

E tudo começou por conta de um erro crasso e gigantesco de dois repórteres do News of the World, profissionais especializados em procurar escândalos – daqueles que não hesitam em subornar policiais, autoridades e funcionários das vítimas.

Sempre na mira dos policiais por constantes contravenções, seja por perturbação da ordem pública ou posse de pequenas quantidades de drogas, o guitarrista Brian Jones nunca se importou em tomar os devidos cuidados com a polícia ou a imprensa de baixa qualidade – até porque estava sempre chapado.

E foi um desses momentos chapados, em um pub londrino, que Jones, louco e bêbado, caiu na armadilha dos dois repórteres, que puxaram papo e incentivaram a falar um monte de bobagens, entre as quais defendendo o uso de entorpecentes e dizendo-se usuário contumaz.

Os repórteres conseguiram o queriam: uma manchete escandalosa envolvendo um ídolo da juventude. Escreveram uma página com a suposta entrevista com um rolling stone admitindo ser usuário de drogas pesadas. 

Quem é você?

O problema é os repórteres eram tão incompetentes que não atentaram para um fato importante: estavam conversando com Brian Jones, mas acharam que era Mick Jagger. E o texto todo tratava Jones como Jagger. 

Esse erro ridículo e primário, coisa de estagiário desinformado, desmoralizou o News of the World, que virou motivo de piada. Os dois otários acabaram sendo humilhados pelos próprios Rolling Stones em notas e entrevistas posteriores. 

Uma questão que fez toda a diferença é que, mesmo com a publicação errônea e uma eventual retificação e pedido de desculpas, Jagger ficou furioso pelo equívoco que detonava a sua imagem – e, por tabela, a de todos os roqueiros. Resolveu processar o jornal.

Os editores do News of the World tentavam conter os danos da desmoralização e consideraram um insulto o processo de Jagger – ainda que este estivesse coberto de razão. 

Uma operação de guerra foi armada e virou ponto de honra destruir Jagger e os Stones. Os melhores repórteres do jornal foram destacados para descobrir o maior número de podres dos integrantes, assim como experientes jornalistas free lancer foram contratados.

Vingança quase letal

O esforço deu resultado uma semana depois, quando um repórter conseguiu descobrir a festinha em Redlands. Desde então, o que se sabia era que a polícia chegou à propriedade pouco depois da saída de George Harrison e da esposa. Seria uma batida "avisada com antecedência".

Drogas foram encontradas no bolso de uma jaqueta de Mick Jagger, na de um marchand amigo (Robert Fraser) da banda e na valise de uma figura controversa conhecida como David Schneiderman, canadense sem ocupação definida, mas que sempre conseguia drogas para a turma. 

Também se tornou clássica a imagem de Marianne Faithfull, então namorada de Jagger, descendo a escada, após um banho, vestida apenas com um tapete chique, no qual se enrolou para ver o que estava acontecendo.

As consequências foram funestas. Após a instrução do processo, Jagger, Richards e Fraser foram condenados por um tribunal local a penas que variavam de 6 a 18 meses de prisão, mais pagamento de multa. 

Os dois Stones ficaram uma noite na prisão, mas ganharam o direito de responder o processo em liberdade após pagamento de fiança – Fraser não teve a mesma sorte. Persistiram as acusações de posse de entorpecentes e permissão de uso de drogas na residência – no caso do guitarrista.

Clamor contra a injustiça

A pena rigorosa suscitou um debate público no país sobre a legislação sobre drogas, os limites do Estado e o comportamento da juventude. O conservador e importante diário The Times, ainda hoje o mais prestigioso do Reino Unido, publicou um famoso editorial questionando a severidade da pena aplicada e se o tratamento dispensado aos músico foi justo.

"Será que se eles não fossem famosos e contestadores seriam julgados com tamanha severidade? Pessoas comuns flagradas e julgadas pelos mesmos delitos, com as mesmas quantidades de substâncias, não receberam penas tão duras recentemente", diz o texto do editorial.

O autor do editorial foi o insuspeito jornalista notadamente conservador e crítico do comportamento jovem da época William Rees-Mogg, um dos chefes do The Times. 

Conservador sim, mas Mogg era antes de tudo um defensor da legalidade e da coerência política. E a perseguição aos Stones era claramente uma sequência absurda de abusos de poder e de liberdade de imprensa.

O jornalista e escritor Simon Wells fez uma pesquisa minuciosa e entrevistou gente que não falava com a imprensa havia décadas. Teve acesso a documentos até então inéditos do processo e reconstituiu as investigações da polícia e da imprensa na época. 

Sua obra tem uma conclusão importante: está provado que foram jornalistas do News of the World que alertaram e "estimularam" a polícia inglesa fosse a Redlands para o flagrante, naquele dia exata e na hora exata.

A única lacuna da obra, e de todas que se dedicaram ao tema, é a "fonte" dos jornalistas a respeito da festa. Quem abriu o bico aos repórteres sobre a festinha regada a drogas naquele final de semana em Redlands? 

Quem delatou?

Uma coisa parece clara: tinha de ser algum convidado, com livre acesso aos Stones. A tese mais provável é a de que tenha sido o desocupado David Schneiderman, cuja identidade passou até mesmo a ser questionada. 

Traficante oficial de parte da turma, acabou desaparecendo misteriosamente após a batida policial, mesmo tendo sua pasta cheia de drogas confiscada. Não foi indiciado nem processado, e especula-se que no dia seguinte teria fugido para a Irlanda, para depois voltar ao Canadá.

Outra tese: a polícia deliberadamente esperou George Harrison ir embora da festa para dar a batida? Uma fonte não identificada da polícia britânica disse que sim, pois não haveria interesse da Scotland Yard em deter um beatle – os Beatles ainda gozavam de enorme prestígio, ainda eram os queridinhos, ainda que John Lennon começasse a fazer uma presepada atrás da outra.

O episódio é importante dentro da história do rock porque representou, talvez pela primeira vez, uma séria ameaça aos artistas exclusivamente por conta seus estilos de vida. Roqueiros americanos foram presos anos antes, mas sempre acusados por crimes comprovados, como nos casos de Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e, de certa forma, em algumas das investidas contra Little Richard.

Em relação aos Stones, houve armação por conta da vingança dos podres tabloides britânicos, que contaram com a sanha sádica de uma polícia instrumentalizada e preconceituosa, pra não falar em inveja pura e despeito.

Diante da repercussão imensa do caso, apenas acabaram revistas e bastante amenizadas, permitindo que os músicos continuassem suas carreiras até, pelo menos, a próxima prisão.

Jagger se safou e mostrou que não tinha interesse nas drogas como seu parceiro Richards, que frequentou várias vezes as delegacias de polícia nos anos 70 até correr o sério risco de ser condenado a mais de 20 anos de cadeia no Canadá, em 1977. Ele tentou entrar no país com farto suprimento drogas e ficou detido por alguns dias em um hotel. 

Liberado, teve de encarar um processo longo até que as acusações de tráfico fossem retiradas. Condenado a prestar serviços comunitários e multa, acabou por realizar dois concertos beneficentes em 1979 com o apoio de uma banda chamada New Barbarians, da qual fazia parte o então companheiro de Stones Ron Wood. Foi a sua última encrenca severa com a lei.

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