quinta-feira, 23 de junho de 2022

Até quando vamos esperar a perversidade predominar?

 Nos primeiros acordes das  violas incandescentes, ao menos três pessoas identificaram a música, ainda que os arranjos instrumentais a incrementassem. "É Plebe Rude! Essa música vem a calhar e é a cara de nosso tempo!", exclamou uma mulher que não tinha 40 anos de idade. 

"Até Quando Esperar", uma canção composta e lançada há 35 anos, serviu de trilha sonora para os protestos de julho de 2013 e se mostra muito atual em 2022. 

É o retrato explícito da perversidade que domina nossas vidas e da desumanização dos tempos bolsonaros, que dinamitaram a civilização e continuam incentivando a guerra contra o conhecimento.

Não foi aleatória a escolha da canção pela dupla Moda de Rock - Zé Hélder e Ricardo Vignini - para o repertório da reestreia em palcos paulistanos. 

A canção estará no novo disco dos violeiros, "Moda de Rock Brasil", que faz uma homenagem ao rock nacional transpondo clássicos para a viola caipira de dez cordas.

Embora não sejam engajados, os dois são críticos contundentes à falta de política geral para o setor cultural e sempre que podem aludem ao fato de que o mundo das artes não só foi abandonado como está sendo sucateado deliberadamente.

Na viola, "Até Quando Esperar", da Plebe Rude, não perde a sua contundência e acaba ficando mais sarcástica e irônica na versão instrumental "folk". Ainda soa como um tapa na cara bem dado.

Com a perversidade realçada diante das barbaridades cotidianas, o que sobra para tentarmos sobreviver ao caos medieval que o mundo em desintegração nos reserva?

Quando pensávamos que o horror havia atingido graus elevados com os assassinatos do indigenista Bruno Araújo e do jornalista Dom Phillips, eis que o ex-ministro da Educação é preso acusado de alta corrupção, uma juíza tenta forçar a gestação, fruto de estupro, de um bebê em uma menina de 11 anos, um funcionário público espanca mulheres em uma prefeitura do interior de São Paulo, policiais continuam atacando inocentes em comunidades no Brasil inteiro e a Cracolândia continua servindo de plataforma politica abominável na cidade de São Paulo.

Como previsto, as duas leis federais de auxílio ao setor cultural, destroçado pela pandemia e acossado pelo bolsonarismo, foram vetadas pelo nefasto presidente da República - justamente em ano eleitoral. Sem disposição, competência e vontade política, os parlamentares decidiram engolir os vetos e partir paras campanhas - afinal, é ano de eleições gerais...

Anestesiada e apática, a sociedade assiste a reiterados casos de racismo em todos os níveis de nojo e gravidade, além da homofobia cara de cada dia. 

Os atentados aos direitos humanos e civis são diários e em todos os cantos, e principalmente em locais longe o bastante para que não os importemos e deixemos todo o tipo de crime organizado, estimulado pelas políticas predatórias de um governo de inspiração fascista.

Lamentavelmente., as nuvens no horizonte são pesadas e jogam contra a civilização. Até quando esperar? Teremos paciência para esperar? Mesmo que o bolsonarismo seja trucidado e extinto nas próximas eleições, algo bem factível, como nos livrarmos da peste que tal "movimento" inoculou em nossa sociedade?

Não será fácil conviver com os restos do bolsonarismo impregnados em nossa sociedade, cada vez mais empesteada por ideias fascistas e autoritárias, onde o preconceito e o racismo avançam com velocidade e a censura a obras de arte ganha cada vez mais adeptos.

Estamos inertes diante do fortalecimento do mundo medieval com a mesma indiferença diante dos ataques medievais do governo e de seitas religiosas nojentas.

Diante da maior crise sanitária da história da humanidade, ministros incapazes e insensíveis parecem viver em outro planeta, defendendo cortes nos orçamentos da saúde e da educação – quando não secretos – para agradar militares omissos, ociosos e preguiçosos.

Com o mundo pegando fogo e a sociedade se deteriorando em todos os níveis, vemos artistas vomitando a favor de políticas que depredam direitos e que sabotam auxílios emergenciais para profissionais da cultura e do entretenimento. Com não fomos capazes de ver esse descarrilamento?

E então vemos com espanto que o mesmo artista conservador que clama por ajuda e reivindica o mais do que necessário auxílio apoia um governo nefasto e com tendência fascista, o mesmo que sabota a concessão do dinheiro emergencial para a classe artística, que só verá, se é que verá, a verba em 2021.

O que impede essa camada da população de enxergar os perigos e as armadilhas que a extrema direita espalha para aparelhar e contaminar a sociedade com suas ideias medievais?

Como é possível que gente que vive de arte, de cultura, e que deveria privilegiar a informação de qualidade, endosse a inquisição contra uma criança que precisa desesperadamente de auxílio para abortar uma gravidez resultado de abuso?

Em que momento essa gente abandonou os preceitos da humanidade e da solidariedade em favor de um fundamentalismo desprovido de inteligência e decência?

Como pode músico que se diz libertário e roqueiro abraçar causas indefensáveis de cunho religioso e ideológico dos mais atrasados que, em última instância, lhe prejudicará pessoalmente, seja com o fim da democracia, com a instauração da censura ou mesmo com perseguição política meramente por conta de sua atividade profissional?

A cegueira ideológica aliada à profunda indigência intelectual que contaminou o meio musical brasileiro, especificamente, produz cenas lamentáveis e declarações deploráveis, que vão da defesa pura e simples da censura a quem é contra Jair Bolsonaro, o presidente nefasto, até a proposição de criar critérios políticos para a concessão dos benefícios emergenciais propostos pelas Leis Aldyr Blanc e Paulo Gustavo.

Em que ponto da história essa gente foi contaminada pela burrice ou sofreu deformação irreversível de caráter?

A divisão social ganha ares de guerra civil no momento em que a desumanidade e a perversidade entram em campo. Só isso explica o “resgate” de ideias arcaicas e posturas antidemocráticas
em pleno século XXI, com flertes diários com o totalitarismo e com o estelionato religioso praticado por muitos políticos e pastores.

Assim como a imensa maioria da população alemã abraçou o nazismo por medo, mas também por pragmatismo e pela ojeriza a qualquer tipo de democracia, no Brasil atual fincaram raízes profundas a desfaçatez e o cinismo de imensa parcela da sociedade.

Não nos enganemos: essa parcela grande que sempre cultivou o ódio, o preconceito e o racismo. Isso sempre fez parte de nossa vida cotidiana, mas parecia estar perdendo terreno nos últimos anos.

Não é por acaso a explosão de inúmeros eventos com racismo nos últimos tempos no futebol e no comércio das grandes cidades.

E então percebemos que a perversidade e a desumanidade se tornaram elementos indispensáveis para erodir os fundamentos da sociedade democrática e depredar reputações e biografias.

Esse clima sombrio explica e justifica a existência de um dossiê antifascista produzido dentro do Ministério da Justiça e em Assembleias Legislativas, tudo acompanhado de uma certa 'normalização em relação aos assassinatos de um jornalista e de um indigenista que era ativista dos direitos humanos.

Já prevíamos isso á atrás: o clima de guerra e ódio contra a civilização cairia com todas as armas em cima dos adversários ativos e críticos contundentes do caráter incompetente e criminoso de um governo protofascista. Seus apoiadores se sentiriam incentivados a atacar os "adversários" e "opositores", sendo que jornalistas e artistas estariam na linha de frente. 

Pois então agora temos um cadáver para chamar de nosso, o de Dom Phillips, jornalista que ousou enfrentar as ameaças das hordas medievais que contam as vistas grossas do governo federal que ignora deliberadamente os ataques e ameaças aos indígenas.

E então chega o momento em que devemos tomar cuidado ao dobrar cada esquina ao sair de casa. Perdeu quem apostou que esse dia nunca chegaria.


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