Tiago Rodrigues - em depoimento a Marcelo Moreira
Não existe musica ruim. Existe música, e sempre tem alguém que quer escutar. Há sempre alguém que se dispõe a dedicar minutos a algum tipo de manifestação artística, e a música é a que recebe a maior atenção porque é a resposta é imediata.
Posso dizer que nunca deixei de receber atenção, seja no bar. seja na calçada. Acho que produzo alo diferente, que chama a atenção, sempre no rock and roll, que é a minha paixão.
Nunca passei fome, mas foi por pouco. Várias vezes a família ficou no limite. Não posso jamais deixar de admirar o esforço do meus pais, dentro dos limites da pobreza, em evitar a falta de comida. Havia comida, por mais dificuldades d que tínhamos, e isso nos empurrou para a frente.
No entanto, não foram poucas as vezes em que pedíamos e não recebíamos, por absoluta impossibilidade financeira. Quantas vezes passei vontade de tomar um sorvete ou uma latinha de guaraná. Muitas vezes não dava...
Tudo isso faz tempo. Era um tempo idílico, mas difícil. A escola era um refúgio, mas ainda assim complicado porque a escassez era uma constante em uma família pobre em que uma mãe costurava o dia inteiro e um pai se desdobrava em dois empregos como porteiro.
A educação musical só veio graças a uma igreja evangélica, que fornecia o ensino e os instrumentos - a contrapartida, infelizmente, era a doutrinação religiosa e o dogmatismo, mas disso é possível se libertar - e foi o que aconteceu comigo e minha irmã.
Foi na igreja que aprendi a tocar guitarra e teclado e a ter noção do que significa solidariedade acima da caridade. O rock, por mais irônico que seja, veio por meio da religião, e foi dessa forma que aprendi que a fome não tem hora e não tem rótulo precisa ser saciada e debelada.
A igreja ficou para trás, a vida seguiu em frente, mas a solidariedade jamais me abandonou. Quando percebo que o mundo piorou demais em 2022 e que os índices de pobreza explodem em um mundo onde há fartura, a sensação de fracasso inunda a minha vida de forma inerente.
Minhas banda de rock nunca foram para a frente, mas a dupla com minha irmã baixista e guitarrista me mantém na música. faz cinco anos que mantemos uma pizzaria delivery em um bairro da periferia da zona norte. Ganhamos o suficiente parta nós e para sustentar um pequeno projeto assistencial pra alimentar algumas famílias.
Hoje são 33 milhões de pessoas no Brasil que passam fome. são 13 milhões de desempregados. A vida piorou demais por conta da pandemia agravada por um governo federal incompetente e incapaz de elaborar uma política econômica minimamente decente para minimizar o sofrimento de uma população que vê esvair a sua renda. É um governo que odeia os pobres.
Não me tornei um músico profissional pleno, mas consegui que me arte amadora propiciasse algum conforto e alguma possibilidade de amenizar o sofrimento de quem passa fome. Ajudei demais algumas ONGs que distribuem comida nas madrugadas frias de São Paulo.
Já ajudei o padre Julio Lancelotrti a distribuir comida na zona leste de São Paulo. Parece que estamos enxugando gelo, mas ainda assim continuamos, porque é inconcebível que alguém passe fome ou ue tenha de "morar" na rua.
Toco Beatles, Rolling Stones, Mutantes, Paralamas, Legião, e faço uma pizza bem razoável, mas n~çao consigo não chorar quando vejo reportagens na televisão retratando o aumento e a piora da fome na cidad de São Paulo. Há dez, quinze anos, não era assim e parecia que havia um futuro.
Hoje o futuro que existe cai até amanhã, sempre na dependência de uma doação ou de haver mais comida do que o normal no lixo das casas e dos restaurantes.
Talvez nunca seja o suficiente o que fazemos para amenizar a fome, mas a questão é que precisamos de um futuro, precisamos de uma perspectiva. Não a temos, infelizmente. Eu quero parar de alimentar necessitados, seja por respeito, seja por uma questão básica de evolução.
Eu quero parar de exaltar o padre Julio, porque quando isso acontecer é sinal de que a fome diminuiu e que o número de sem teto diminuiu ou sumiu.
Eu queria parar de chorar todas as vezes em que a polícia massacra as pessoas na Cracolândia. Eu queria parar de chorar quando uma criança pede esmola ou vende balas a R$ 1.
Eu queria parar de chorar quando as crianças empurrar de lado um instrumento musical porque precisam sair correndo pra ajudar a mãe a conseguir um resto de comida de amanhã.
No livro "Quarto de Despejo", a escritora Carolina Marina de Jesus (1914-1977) descreve o desespero de acordar rodas as manhãs, na antiga favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, sem saber se conseguiria alimentar os três filhos pequenos com o que conseguisse vender dos papéis e latas que recolhesse das ruas e dos lixos.
Sessenta anos depois, as coisas estão piores, em situação mais desesperadora em várias cidades do país. Minha guitarra chora, assim como eu, e as perspectivas são as piores possíveis, por mais que um governo diferente, e melhor, possa ser eleito.
Não consigo parar de chorar.
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