sexta-feira, 24 de junho de 2022

O blues inovador de Filippe Dias

 Filippe Dias é um daqueles músicos batalhadores que topam tocar o tempo todo. O paulista apaixonado por blues, soul e rhythm and blues leva seu som refinado e seus fraseados limpos e elegantes para a rua, por exemplo, e adora. Tinha espaço cativo na avenida Paulista, em São Paulo, aos domingos, perto de uma das saídas da estação Trianon-Masp do metrô, quando a via é interditada para lazer.

Sem rodeios, permanecia com seu trio o dia inteiro, alternando versões eletrizantes de clássicos do blues e do rock e suas composições do até então único trabalho autoral, o EP "Borderline". Com sets de 35 a 40 minutos, juntava uma aglomeração de respeito em todas as entradas.

E então veio a pandemia de covid-19 trancando todos em casa. A solução foi investir nas lives, nos shows intimistas gravados e nas composições do que viria a ser "Dias", seu primeiro álbum.

O investimento de tempo e recursos, com tempo de sobra para refletir e burilar, resultou em um trabalho estupendo. Detalhista e instrumentista de bom gosto, não economizou na hora de despejar todas as suas influências.

O blues rock que tanto chamou a atenção dos aficionados na avenida Paulista e nos vídeos da internet explode já primeira música, "Don't Bother Calling", encharcada de feeling e com uma guitarra chorosa e bem timbrada. Difícil não lembrar do norte-americano Joe Bonamassa e do inglês Danny Bryant.

"Don't You Hear (Your Poor Lover Calling)?" segue a mesma toada, mas desta vez o blues remete ao groove negro dos norte-americanos Eric gales e Gary Clark Jr. A guitarra deliciosa e manhosa se esparrama por riffs tortuosos, com um solo portentoso que traz mais referências - Warren Haynes, do Gov't Mule.

Na sequência a coisa desacelera, mas fica ainda melhor no longo e dramático blues "Brother, Brother", com uma pegada de Neil Young no começo e depois descambando para uma sequência de riffs dramáticos e climáticos em quase dez minutos de extremo bom gosto.

O tom muda em "You Don’t Know How it Feels", que tem arranjos que deixariam Marvin Gaye orgulhoso. É uma canção simples, uma balada soul precisa e que traz elementos de "Fool", outra balada, que está no EP de estreia de Dias. 

O bom gosto permanece em "Turn the Lights On", agora um rhythm and blues "maneiro" e moderno, com arranjos sutis e bem encaixado. A guitarra ao estilo soft jazz é o ponto alto. E o jazz predomina nos arranjos de "Give It Time", bem anos 70, com um órgão Hammond que faz toda a diferença.

"Stitching Out Love" retoma o rhythm and blues setentista esbanjando talento e sofisticação em mais uma balada, enquanto que "We Went to the Moon" investe em um clima sessentista à la Beatles. é a menos blues e menos impactante - tinha de haver uma assim entre tanta coisa legal. O efeito de banjo em uma das sequências de cordas é uma boa sacada.

A grande surpresa do álbum "Dias" foi reservada para a trilogia de encerramento, com canções mais acústicas e diferentes, cantadas em português e passeando pela folk music e MPB. É o ápice do bom gosto, como na sequência de abertura da instrumental "Decolagem", com um piano suave e delicado que lembra bastante as suíte de cunho erudito de Emerson, Lake & Palmer.

O piano faz a emenda perfeita para "Singularidade", que esbanja delicadeza em uma letra romântica, que ganha uma interpretação comovente embalada por arranjos de cordas expressivos - é quase o encontro da bossa nova com o compositor norte-americano George Gershwin. Os temas orquestrais do finbal são igualmente belos.

Falta a guitarra, já que se trata de um disco de guitarrista e vocalista? Falta, mas quem se importa com isso diante da beleza da canção e dos arranjos? Por acaso alguém sentiu falta de guitarra e bateria em "Eleanor Rigby" ou "She's Leaving Home", dos Beatles? Longe de fazer qualquer comparação indevida, o princípio é o mesmo.

O violão entra imediatamente ao final, na emenda com a canção seguinte, "Barquinho", que envereda mais ainda por um clima de bossa nova, mas de inspiração new bossa, digamos assim - aquela que recauchutada com competência por bandas inglesas dos anos 80. 

É um desfecho inusitado para um disco de blues, mas que exalta a versatilidade e o ecletismo de um instrumentista e compositor de altíssimo calibre. "Dias" é um disco imenso, daqueles que redimem e elevam o espírito. Uma curiosidade: o single lançado no começo do ano, "Till I Get Her Back Again", ficou de forma, de forma inexplicável...

Produzido, gravado e mixado por Amleto Barboni, ótimo guitarrista de blues que também assina os arranjos orquestrais, "Dias" foi masterizado por Brian Lucey (Doyle Bramhall II, The Black Keys, e Arctic Monkeys), em Los Angeles.

Em declarações ao site da rádio 89 FM, de São Paulo, Filippe Dias explicou que existe um certo conceito que perpassa toda a obra, ainda que as músicas sejam diversificadas e diferentes.

"Eu comecei a ver que todas as músicas que eu fazia, de alguma maneira, estavam ligadas com questões de relacionamento, mas sobretudo com as coisas que se desenvolvem dentro de um período de tempo", disse o guitarrista.

Dessaa forma, percebeu que tudo estava conectado a um período de mudanças. "Estava rolando um link das coisas que escrevia com as mudanças que estavam acontecendo. A partir disso, tive a ideia de que esse disco poderia falar do tempo, da impermanência das coisas, e de como elas se transformam e a gente se transforma junto."




https://www.youtube.com/watch?v=r9DsdBwTmjc

https://www.youtube.com/watch?v=gbdL6Hzfjcw

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