segunda-feira, 19 de abril de 2021

Roberto Carlos, 80 anos, o onipresente

Marcelo Moreira




A onipresença é uma tônica da sociedade brasileira desde sempre, mas principalmente no século XX. Desde as seguidas crises políticas, sempre passando pelo envolvimento dos militares, até a paixão pelo futebol, que nos levou ao topo do esporte, a vida brasileira sempre teve pairando sobre ela, nos últimos 60 anos, a TV Globo e o cantor Roberto Carlos.

Para o bem e para o mal, as duas "instituições" são indissociáveis de nossas vidas e são uma marca impossível de ignorar a partir da segunda metade do século passado.

Aos 80 anos de idade, Roberto Carlos ainda reina absoluto no entretenimento de um país acostumado a venerar figurar de massa, por mais controversas que sejam, por mais apaixonantes que sejam.

O cantor se confunde com a realidade do entretenimento e sua longevidade também reflete a necessidade de um público ávido por um "Pelé" em todas as atividades. O "Rei" está em todos os cantinhos, em todas as vielas da mente e em todos os nossos corações - para desespero de muitos.

A onipresença de Roberto Carlos está sendo reverenciada por muitos, mas há detratores que que não poupam o cantor por uma suposta "influência nefasta" na cultura nacional. Não se é "Rei" impunemente, e talvez seja um ingrediente - essa onipresença e o ônus que ela traz - que expliquem, em parte, o que o cantor se tornou.

De um símbolo de certa rebeldia comportada, na Jovem Guarda, a um ícone fossilizado do conservadorismo católico-medieval, o "Rei" dominou cada espaço de dial de rádio e cada vitrola vendida neste país. 

Do rock ao brega, do pop sofisticado ao mais desbragado populismo musical, Roberto Carlos encampou todas as vertentes musicais de um país rico culturalmente e diversificado musicalmente. Nunca houve algo parecido como Roberto Carlos na história da música - possivelmente, nem Elvis Presley pode se equiparar a ele em termos de onipresença.

Se ele mostrou claramente o dom para as multidões e para atingir o coração de um público sedento por ser arrebatado, representou também como ninguém as idiossincrasias e contradições de uma sociedade complexa multifacetada como a nossa.

É evidente que ele nunca foi rebelde e jamais passou nem perto de raspar um perfil revolucionário, mas não conseguiu escapar de se tornar uma voz importante que bradava por uma mudança, ainda que cosmética, na vanguarda cultural do país.

Era a voz de uma juventude que até se identificada um pouco com a bossa nova, mas nem um pouco com as trovas populares-bregas dos anos 40 ou com o então fossilizado samba de marchinhas e domesticado. 

Os jovens queriam um som próprio, que retratassem o seu cotidiano e suas ansiedades, assim como ambições. Parecia que o rock tropicalizado poderia ser esse veículo, encarnado na Jovem Guarda.

Por um tempo deu certo, ainda que o som se mostrasse pasteurizado e bem longe do perigo renovador e revolucionário do rock inglês e da selvageria (até certo ponto) do rock americano.

Embora rápido, o período de predomínio da Jovem Guarda foi o suficiente para transformá-lo em superastro, com direito a fãs-clubes e uma carreira cinematográfica respeitável em termos de negócio (e nem tanto em termos de qualidade).

O tropicalismo, o samba-rock, a explosão da música negra, o surgimento de um MPB de respeito e a escalada do rock misturado a tudo não foram suficientes para destronar Roberto Carlos, cada vez mais manso e cooptado pelo sistema.

E então a ditadura militar, gradativamente, foi absorvendo a música do "Rei" como a principal trilha sonora do "milagre econômico" e do combate à "subversão", onde democracia e liberdade de expressão eram palavrões e passíveis de punição.

É nesse período que as controvérsias explodem, com a aparente acomodação do artista em condição de superastro e de senhor, em parte, da própria carreira, ao mesmo tempo em que empreende mudanças sensíveis no repertório.

O hits sessentistas ainda davam as caras nos shows e, de forma calculada, ainda gostava de mostrar que tinha uma dose de rebeldia, ainda que se mostrasse cada vez mais uma voz do sistema e bem confortável nesse papel. 

Mas o mundo pop era por demais atraente, assim como as possibilidades de ganho e de expansão e penetração em todos os segmentos da sociedade. 

E foi assim que os anos 80 vieram e consolidaram o "Rei", com seus 40 anos de idade, como a divindade pop por excelência, espantando de vez qualquer possibilidade de "perigo" e reforçando a imagem conservadora de "ídolo pop da família", com um repertório cada vez mais adaptado para um público entorpecido e avesso a inovações. 

Não é por outro motivo que os shows de fim de ano na TV Globo caíram tanto nas graças de uma gorda parcela da população brasileira - da mesma forma que os cruzeiros regados a shows do "Rei" viraram uma lucrativa modalidade de entretenimento cultural nos anos 90.

Roberto Carlos se adaptou bem à mudança na carreira e ao papel de maior de todos os ídolos musicais de um país diversos diversificado, mas quase monotemático em relação à cultura de massas. 

Ignorou olimpicamente as críticas de omissão em relação à política, patrulhamento que também caiu sobre Pelé. Não só manteve silêncio sobre o assunto como, de certa forma, teve atitudes e comportamentos que podem perfeitamente passar por um endosso ao regime militar ou aos poderosos de plantão, conforme à época. 

Foi ficando cada vez mais confortável para o cantor encampar e professar seu conservadorismo religioso e de comportamento, o que lhe granjeou mais admiração por parte de um público cativo, domesticado e sem nenhuma ambição. 

De forma planejada, ou não, Roberto Carlos sedimentou a sua imagem na imaginação do povo e construiu uma sólida reputação sem que precisasse se reinventar, mesmo em tempos de internet e de destruição da indústria fonográfica. A onipresença se encarregou de esculpir o mito.

Caso único no mundo, Roberto Carlos é a imagem de um país e de uma sociedade que valorizam as adaptações e as acomodações em detrimento da ousadia e de avanços rápidos. 

Não deixa de ser a cara de uma nação e de um povo que não aprecia falar de suas mazelas e que prefere o aconchego de discursos idílicos e de otimismos de todos os tipos. Longe de incomodar, a música e as mensagens de Roberto Carlos agregam e oferecem um conforto que sempre foram ansiados, ainda mais em tempos de crise e pandemia.

Roberto Carlos é um gigante da cultura e do entretenimento como nenhum artista se tornou. Por conta de sua onipresença, encarna o que há de bom e muio do que há de pior em uma sociedade desigual, individualista e de matiz conservador. O "Rei" é um dos reflexos de nossas próprias vidas.

Leria mais sobre os 80 anos de Roberto Carlos aqui, em texto interessante de Maro Ferreira, sobre o impacto do "Rei" no mercado nacional; aqui, o mesmo Mauro Ferreira faz um passeio por 80 canções importantes do astro; por fim, leia sobre o lado sombrio do cantor aqui, em texto do jornalista Jamari França.

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