Caio de Mello Martins*
Caio de Mello Martins - publicado originalmente no site Roque ReversoFalar de “Psalm 69” como um álbum de metal industrial é desprezar o impacto que ele provoca no sistema nervoso.
Essa massa sonora abominosa conjura excertos de filmes de guerra, terror e ficção científica, infundidos da agonia, pânico e horror que do grito de suas vítimas saltam direto para o cangote do incauto ouvinte; ecos de comerciais de TV que se implantam insidiosamente em nossos inconscientes; transmissões de notícias tendo à frente autoridades que, com sua canastrice, asseguram o moto-perpétuo infame da pantomima geopolítica, em subserviência a interesses corporativos e sectários; samplers das sirenes que em vão chamam nossa anestesiada atenção para a barbárie e a histeria que atravessam nossa patética experiência de anomia e medo nos formigueiros urbanos; samplers das explosões que evidenciam o poder do homem de aniquilar torpemente seu semelhante e friamente – num estalar de dedos – sua espécie inteira.
E essa é só a camada por cima de blocos de powerchords que, de tão monolíticos, mais parecem ter sido gravados sob a gravidade de Júpiter; baterias incessantes que, como bate-estacas fincando as fundações de uma aberração arquitetônica, vibram pelos seus ossos, pulsam forte dentro de suas cavidades e continuarão a vibrar e a pulsar muito após o seu corpo ter sido roído por larvas e baratas; baixos e sintetizadores de baixa frequência que adicionam calibre e profundidade ao movimento deste maquinário, preciso, infalível – impessoal. O pacto faustiano do progresso que requer contínuos ciclos de destruição criativa.
Ainda soa como metal industrial? “Psalm 69” poderia ter surgido dos mesmos ingredientes de Marylin Mason, Rammstein ou Insane Clown Posse? “Metal-da-overdose-de-sentidos”, “Metal-da-esquizofrenia-pós-moderna” ou “Metal-do-curto-circuito-no-cybercórtex-replicante” são rótulos que soariam mais apropriados.
Lançado em 14 de julho de 1992, há exatos 30 anos, “Psalm 69: The Way To Succeed and The Way To Suck Eggs” completa a tríade vencedora que operou a transformação do Ministry de uma banda anglófila de synth-pop/EBM para a principal pioneira da fusão entre heavy metal e eletrônico (desenvolvida a partir do clássico “Land of Rape and Honey”, de 1988, e aperfeiçoada na sequência com “The Mind Is a Terrible Thing to Taste”, de 1989).
“Psalm” é de longe o mais metal dos três – explica-se: foi o primeiro álbum do Ministry a envolver outro guitarrista que não Al Jourgensen, cantor e co-líder do Ministry ao lado de Paul Barker, baixista com quem divide os créditos (a la McCartney/Lennon) e também a formação da banda, oficialmente então um duo com seu variável elenco de colaboradores.
Desde a turnê de “The Mind…” que Ministry se apresentava com outros dois guitarreiros vindos de bandas de thrash metal: Louis Svitek, do M.O.D., e Mike Scaccia, do Rigor Mortis. Esta formação decididamente metaleira foi mantida para a gravação do novo álbum.
Do início ao fim, “Psalm 69” traz uma sequência de nove faixas impiedosas que, sem desmerecer os dois trabalhos anteriores, compõem o repertório mais consistente já posto em acetato pela banda. É daqueles álbuns para não pular nenhuma faixa. E, consideradas no conjunto, as canções formam uma totalidade de sentido.
Não é forçar a barra afirmar que cada faixa representa uma faceta da sociedade norte-americana dentro da visão ácida e sombria de Al Jourgensen:
“N.W.O”: The New World Order. Com discursos de George W. Bush (pai) a justificar a então vigente Guerra do Golfo – “What we are looking at is good and evil, right and wrong / We are not about to repeat the same mistakes twice”. O pentágono, o complexo bélico dos EUA e seu apetite por “guerras por procuração” e conflitos intestinos que alimentem a indústria de armas.
“Just One Fix”: Os EUA como o maior mercado consumidor de drogas do mundo, sintoma de falência do puritanismo cristão que constitui uma das bases da sociedade norte-americana, com seus imperativos de disciplina, obediência e higidez moral;
“TVII”: a mídia como instrumento não de conhecimento e emancipação, mas de arregimentação de indivíduos ao consumismo desenfreado e à passividade/apatia diante de uma realidade que já não é percebida como tal, e sim como simulacro;
“Hero”: aqui retrata-se o outro lado de uma nação militarizada e constantemente em estado beligerante. O da ferida social aberta. De famílias humilhadas por cederem seus filhos ao Estado como bucha de canhão. De veteranos de guerra, traumatizados sobretudo com a carnificina humana do campo de batalha, mas também com o condicionamento militar que busca eliminar os vestígios de humanidade não só do inimigo, mas do próprio soldado. Que dirá Stanley Kubrick.
“Jesus Built My Hotrod”: o tédio da sociedade da sobrevivência ampliada canaliza seus impulsos destrutivos para a morbidez que transforma a mutilação e o sofrimento alheio em fetiche – dos cristãos devorados por leões em Roma às capotagens de pilotos e fraturas múltiplas de jogadores de futebol;
“Scarecrow”: as cores do fatalismo que envolve a lenda do apocalipse são usadas para pintar o sentimento de fim iminente que, se na década passada (1980) advinha da tensão da Guerra Fria entre duas potências atômicas, agora estava alicerçada na consciência de que o planeta passava por rápidas e catastróficas transformações climáticas causadas pela ação humana;
“Psalm 69”: o fundamentalismo cristão que alimenta a fortuna de seitas, grupos de mídia e políticos e fomenta um país cada vez mais contaminado pelo obscurantismo religioso e suas concepções medievais sobre sociedade, liberdade e direitos humanos;
“Corrosion” e “Grace”: são as duas faixas instrumentais que encerram o álbum. Gosto de pensar nelas como, respectivamente, o inferno e o limbo da humanidade após os erros, vícios e perversões apontados pelas faixas anteriores ter-nos dirigido ao colapso total.
Ao escrever letras para as canções, “Uncle Al” assina algumas boas sacadas, repletas da verve perversa e por vezes escatológica que lhe é peculiar – “A preacher with cock in his hand/He wants you to suck off the Holy Ghost/And swallow the sins of man”, em “Psalm 69”; “Eyeless stare invite this whole damnation/Rotting corpse of inhumanity”, em “Scarecrow”, ou “How to love without a trace of dissent/I’ll buy the toys if you can pay for the rent”, em N.W.O.
Que o cara tenha se deparado com esses achados mesmo sob um regime diário de cocaína, crack e uísque com ácido consumidos em sequência, DEZ VEZES POR DIA, é um milagre – ao menos se acreditarmos no relato do próprio cantor em sua autobiografia “The Lost Gospels According To Al Jourgensen”.
Já em 1992 Al Jourgensen – que também foi um notório usuário de heroína – era considerado pela imprensa candidatíssimo a “logo menos” estrelar as páginas do obituário.
Nada mais coerente, portanto, que o maior sucesso do álbum seja composto por uma coleção de balbucios sem sentido e frases delirantes.
As vozes em “Jesus Built My Hotrod” são de Gibby Haynes, vocalista do Butthole Surfers, gravadas enquanto os Surfers passavam de turnê por Chicago, cidade natal do Ministry.
Haynes baixou no lendário Wax Trax, estúdio de Jourgensen e Barker, para algumas sessões – em estado deplorável, a ponto de não conseguir se manter em pé, de acordo com o livro de Jourgensen.
Diz ali que um banquinho foi posto na cabine do estúdio para Haynes se apoiar e conseguir gravar alguma coisa em cima de “uma faixa thrasheira-caipiresca” (nas palavras de Jourgensen) com a qual Al e Scaccia estavam tirando onda há tempos. Haynes movia a boca mole e soltava um grunhido com gírias e exclamações; isso durava algum tempo até que ele, muito louco, caísse do banquinho com a cara no chão – sequência que se repetiu várias vezes…
Nada promissor para o próximo hit do disco, certo? Ainda mais considerando que a gravadora havia pagado 750 mil dólares em adiantamento para o álbum – quase tudo torrado em drogas – e aquele era o único esboço de música.
Jourgensen conta que aproveitou alguns solos blueseiros especialmente selvagens de Scaccia e se trancou no estúdio por três semanas com a fita dos vocais aloprados de Haynes, que foram fatiados, editados e reinseridos como se estivesse “conduzindo uma delicada cirurgia cerebral”, “até que o bla-bla-blá demente dele soasse como palavras de verdade”.
“Jesus Built My Hotrod” foi o início de “Psalm 69”. E poderia também ter sido o fim. A gravadora não gostou nada da faixa que custou 750 mil dólares e veio pedir satisfações à banda.
Do alto de sua porra-louquice, Al Jourgensen instou os executivos a dobrarem o valor se quisessem ver o resto do álbum produzido – do contrário a gravadora poderia lhes dar um pé na bunda coletivo, foda-se.
A jogada funcionou e, o que é melhor: após ser lançado como single, “Jesus (…)” se tornaria em fins de 1991 o maior sucesso do Ministry até então, alcançando o 19º lugar na Billboard e catapultando “Psalm 69” ao disco de platina no ano seguinte.
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