sexta-feira, 1 de julho de 2022

Uma noite de sábado em San Francisco com três gênios do violão



Existem aqueles momentos marcantes em que o tempo para e só você percebe o que acontece – e só você escuta, ou pelo menos é assim que interpretamos. É o tipo de sensação que muitos, no século XIX, garantem ter sentido no teatro Scala, de Milão, assistindo a óperas de Giuseppe Verdi, ou em Bayreuth, na Alemanha, na execução sinfonias de Richard Wagner.

A descrição serve perfeitamente para uma certa sexta-feira de dezembro de 1980, na cidade de San Francisco, na Califórnia, quando três gênios da guitarra e violão subiram ao palco e fizeram o mudo parar para reverenciar sua arte. E também para o sábado seguinte, quando reeditaram o oncerto com algumas variações.

Quem esteve no Warfield Theater naqueles 5 e 6 de dezembro presenciou três homens e três violões exibindo o que de melhor a música ocidental produziu em séculos.

O espanhol Paco de Lucia, o norte-americano Al Di Meola e o inglês John McLaughlin entraram para a história por conta da série de shows magnífico daquela turnê e, meses depois, com o lançamento da gravação daquele concerto.

Quarenta anos depois do lançamento do magistral “Friday Night in San Francisco”, eis que Di Meola acena com uma grande novidade: para comemorar a data, o disco original não apenas seria relançado, como também um outro, com as músicas tocadas no dia seguinte, 6 de dezembro.

Finalmente o disco está no mercadUma noitye do depois de um ano da promessa de Di Meola. “Já me acertei com John McLaughlin e as possibilidades de termos um ‘Saturday Night in San Francisco’ são muito grandes”, afirmou o guitarrista norte-americano em entrevista ao jornalista Daniel Dutra publicada no site da revista Roadie Crew em 2021.

Em tempos de pandemia devastadora, essa é uma notícia extraordinária. “Friday Night in San Francisco” e seu irmão bem mais novo, "Saturday Night in San Franbcisco, são um dos grandes momentos da história da música. Dois já veteranos músicos do cenário internacional aceitara se unir a um jovem prodígio do jazz para uma turnê que deveria reunir o melhor do rock, do jazz, do blues e da música flamenca, além de traços da música erudita.

Internacionalmente, o grande nome era John McLaughlin, guitarrista inglês prestigiadíssimo na Londres do final dos anos 60 e que foi laureado com a honra de tocar com Miles Davis, experiência que foi fundamental para que criasse a sua Mahavishnu Orchestra, um dos pilares do jazz rock.

Al Di Meola, geniozinho precoce, despontou quando integrou um dream team do jazz fusion, o Return to Forever, ao lado dos ícones Stanley Clarke (baixo), Chick Corea (teclados) e Lenny White (bateria). A partir daí decolaria em uma carreira solo extraordinária.

Paco de Lucia, por sua vez, era muito admirado pelos outros dois e era referência europeia no violão erudito e na música flamenca. Frequentemente foi considerado o instrumentista de cordas mais habilidoso e veloz no segmento de cordas.

Apesar das experiências e currículos diversos, ninguém estranhou quando a turnê americana com os três foi engatilhada. Especulou-se a respeito dos egos inflados que poderiam colocar tudo a perder, mas isso não ocorreu. Houve muito respeito no palco e uma espécie de pacto de colaboração com cada um ajudando o outro e jogando juntos para um espetáculo marcante.

A maior excentricidade do repertório, que acaba sendo o maior destaque, em minha opinião, é “Frevo Rasgado”, composição do brasileiro Egberto Gimonti, venerado pelos três guitarristas, o que só realça a genialidade do compositor. A canção foi executada de forma brilhante por Lucia e McLaughlin, que a executaram de forma soberba.

Os três juntos, no álbum, só duelaram, digamos assim, na bela “Fantasia Suite”, de Di Meola, onde cada um deu jeito de estraçalhar no instrumento em uma composição que “sugeria” momentos virtuosos. “Guardian Angel”, de McLaughlin, que fecha o disco, foi gravada em estúdio cinco meses depois, já em 1981.
 
Para o show do dia seguinte, os três colocaram em ação o restante do repertório ensaiado. Em alguns momentos, chega a superar o concerto do dia anterior - os três parecem mais à vontade, mais confiantes e menos rigorosos, principalmente no caso de Paco de Lucia.

"Splendido Sundance" é uma abertura elegante e surpreendente, com performances vigorosas, assim como na ótima "One World", onde Di Meola brilha om dedilhados e frases de efeito. 

"Trilogy Suite" parecia ser o auge da apresentação, com os três mandando ver como se estivessem em duelo, e então vem  a brilhante e progressiva "Meeting o the Spirits", dos tempos de McLaughlin mergulhado nas religiões indianas. Sublime é um adjetivo que não honra o que os instrumentistas fizeram nesta faixa.

No encerramento, mais uma ode e homenagem à música brasileira. "Orpheo Negro" é baseada no filme "Orfeu Negro", d Marcel Camus, uma produção ítalo-franco-brasileira que causou sensação na Europa entre 1958 e 1959,  com arranjos baseados em "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá e Antonio Maria - música central do filme.

A união de três culturas distintas de violão e guitarra acústica resultou em uma série de concertos memoráveis e dois maravilhosos álbuns, bem distintos e com repertórios irretocáveis. 

Demorou 41 anos, mas finalmente o segundo volume, tão bom quanto o primeiro, chegou ao mercado para saciar a vontade de saborear música de altíssima qualidade.



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