quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Artistas brasileiros homenageiam Sun Ra, o pai do afrofuturismo

Alberto Pereira Júnior - especial para o Combate Rock **

“Na linha do tempo, eu acrescento: informação e cultura de rua pra quem quer ficar por dentro. Que a luz ilumine nosso planeta. Um salve pra todas as comunidades”, dispara BNegão na faixa Brainville Dazidéia, que encerra o fantástico Solar - Sun Ra in Brazil, álbum da produtora Red Hot Organization – que, desde 1990, usa mídia e música para mudança social. 

Disponível em todas as plataformas digitais, o lançamento é, a um só tempo, uma homenagem à genialidade musical de Sun Ra, o pai do afrofuturismo, reafirmando sua conexão astral e ancestral com as sonoridades e as culturas da África e suas diásporas – aqui em especial atenção à brasileira –; e um libelo sobre um tema urgente: a justiça climática, um chamado para proteção ambiental do planeta e da saúde de seus habitantes mais vulneráveis.

Idealizado pelo produtor e consultor de música, cultura, entretenimento e iniciativas sociais Béco Dranoff e o produtor musical Xuxa Levy, “Solar” conecta os brasileiros Xênia França, Orquestra Afronsinfônica, Tiganá Santana, Max de Castro, Metá Metá, Edgar, Munir Hossn, Hamilton de Holanda, Fabrício Boliveira, Orquestra Klaxon e BNegão com as artistas estadunidenses Meshell Ndegeocello – 10 vezes indicada ao Grammy – e Jazzmeia Horn, em releituras da obra do fundador da Sun Ra Arkestra. A produção é de Marcos “Xuxa” Levy, músico, arranjador, produtor e diretor musical com mais de 30 anos de carreira.

Sun Ra foi a persona artística adotada, nos anos 1950, pelo compositor, arranjador e tecladista Herman Poole Blount, nascido no Alabama. Jazzista bem-sucedido, ele rumou ao experimentalismo e, sob nova alcunha (Sun = sol em inglês e Ra = nome do deus Sol, do Egito), liderou a corrente avant-garde do jazz, que se opunha tanto aos puristas quanto aos modernos do bepbop. Considerado o elo perdido entre o jazzista Duke Ellington e o grupo de hip hop Public Enemy, pela revista Rolling Stone, lançou mais de 100 álbuns e ajudou a fundar o afruturismo.

O movimento utiliza elementos da ficção científica, a partir de uma perspectiva negra, para a criação de narrativas alternativas e para a celebração da nossa identidade. Ainda hoje, 30 anos após sua morte, sua arte segue inspiradora. Ra se dizia um enviado de Saturno com a missão de pregar a paz social. Símbolo de resistência cultural, influenciou da música à tecnologia, passando por política e sociedade.

O lançamento de Solar - Sun Ra in Brazil dá sequência à série iniciada com o álbum Red Hot & Ra – Nuclear War LP, em maio de 2023, derivado de sua icônica composição, “Nuclear War”, de 1982, originalmente escrita em resposta ao incidente nuclear ocorrido em Three Miles Island, na Pensilvânia, em 1979. 

Embora o artista não tenha abordado diretamente a justiça climática em seu trabalho, várias conexões podem ser feitas entre sua filosofia cósmica e o assunto, como neste potente apelo contra o uso de armas nucleares e sua capacidade de autodestruição da humanidade. Hoje, seguimos à mercê da tensão entre potências atômicas e preocupações contemporâneos como mudança climática e o aquecimento global.

Conectar a arte brasileira, com a arte e filosofia afrofuturista de Sun Ra e o atual debate ecológico é um acerto. O Brasil é o país mais negro fora do continente africano e o detentor da maior parcela da floresta amazônica – ecossistema fundamental para preservação do planeta. E o resultado é impactante.

O trabalho abre com Astroblack Orunmilá, inspirada em Astroblack, faixa considerada por muitos como a pedra angular do trabalho de Ra. Sob a batuta do Maestro Ubiratan Marques, atabaques de candomblé da nação Ketu para o orixá Orunmilá, se sobrepõem às vozes na faixa, em uma interpretação etéria da premiadíssima e mais nova sensação do jazz norte-americano Jazzmeia Horn.

Em Nature’s God (Sun Ra Sam Ba), o multi-instrumentista brasileiro Munir Hossn (que hoje trabalha com Quincy Jones entre outros grandes da música mundial) imaginou Sun Ra celebrando e sendo celebrado, dançando e sambando nas florestas brasileiras, convidando ogãs (percussionistas detentores da sabedoria milenar dos tambores religiosos) e a cantora, compositora, rapper e baixista norte-americana, nascida na Alemanha, Meshell Ndegeocello, para o trabalho.

O trio Metá Metá – formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França – e o rapper Edgar estão na afrocyberpunk acústica Nine Rocket for the Planet, que emula o processo criativo de Ra e sua banda: os artistas juntos, reagindo a estímulos ao vivo, em gravação única. Na letra, a poesia de Edgar vocifera “Tudo que nos resta é um pedaço de floresta”, sobre o futuro do planeta.

Cantor, compositor e violonista, Tiganá Santana entoa poesia afrofuturista que relaciona a ausência de luz do universo com a negritude. E, numa viagem sideral e psicodélica, ao lado da cantora e compositora Xênia França, reafirma que essa “escuridão exterior” é a produtora da “natural música negra”.

A 100% instrumental Interstellar Low Ways conta com Hamilton de Hollanda e seu reconhecido bandolim. Um dos maiores músicos do mundo na atualidade, ele entrega, com seu trio formado pelos tambores de Thiago Rabello e teclados de Salomão Soares, uma das faixas mais dançantes do disco.

Dois poemas de Sun Ra, interpretados em português pelo ator Fabricio Boliveira, servem de interlúdio para o álbum “Solar”: em Código, a inspiração é a poesia Black Prince Charming (o charme do príncipe negro, em tradução livre) e conta com a participação do músico experimental baiano Edbrass Brasil, e seus instrumentos raros e estranhos. Em “Eu Sou um Instrumento”, Boliveira declama o texto sobre arte e música, sob a interferência da magnífica Jazzmeia Horn, que cria texturas de efeitos vocais ao fundo.

Por fim, Brainville Dazidéia encerra o álbum, arrematando com perfeição a união entre o trabalho do pai do Afrofuturismo com o frescor e swing brasileiro do hip hop e do samba rock. Max de Castro é o condutor dessa viagem musical, e dá vida a falas originais de Ra, sobre a verdadeira missão do músico.

No arranjo, destaque para os solos de metais e a cuíca de China Cunha. BNegão, fecha o projeto, bradando sobre a construção de uma nova realidade a partir do som, do poder da música e da criatividade que vem da rua, ou seja, das periferias e das quebradas. 

Dos corpos negros e pardos subjugados e em perigo, mas detentores do conhecimento e da sabedoria ancestral e comunitária que precisam ser preservadas e ajudarão na criação de um mundo mais justo para todos!

** Alberto Pereira Jr. é jornalista, diretor de TV e agitador cultural. Trabalhou nos veículos do Grupo Folha. Apresentou, dirigiu e escreveu o “Trace Trends”, programa de TV da Trace, plataforma global de cultura afrourbana, com temporadas na RedeTV e Multishow/Globoplay.

Nenhum comentário:

Postar um comentário