segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Anos de luta: memórias de Bono, do U2, exaltam o rock ativista e engajado

Um adolescente rebelde e desajustado que abraçou a cultura pun  e se tornou um dos maiores ativistas do Ocidente em questões relativas a direitos humanos e desigualdade social. Nada mal para um moleque pobre e órfão de mãe da zona norte de Dublin, então um capital tristonha e antiquada de uma Irlanda sectária e violenta.

A história de Paul David Hewson é rica, intensa e cheia de percalços para quem imagina o glamour de ser o vocalista do U2 e o ativista engajado que chuta portas, coloca dedos na cara e é recebido por presidentes, reis e papas.

Bono não economiza palavras em seu livro de memórias que quase invade a autobiografia. Sincero e franco até demais, o cantor conseguiu se humanizar m seu primeiro livro, "Surrender - 40 músicas, uma história", lançado no fim do ano passado pela editora Intrínseca no Brasil.

Caudaloso em suas mais de 600 páginas, o livro não é de uma leitura fácil e exige um certo nível de informação geral para acompanhar as narrativas pouco contextualizadas. Atrapalha, mas não inviabiliza a leitura.

Cada um dos 40 capítulos procura relacionar uma música do U2 a fatos importantes da trajetória da banda e do cantor, sem uma sequência cronológica muito clara. É um formato interessante, mas o excesso de detalhismo é um obstáculo para uma leitura fluida.

Ainda assim, "Surrender" é um relato interessante do surgimento de uma banda que se tornou gigante na improvável Dublin dos anos 70 que se equilibrava entre os heróis Thin Lizzy, Boomtown Rats e Undertones, para não falar de Gary Moore, de Belfast, na Irlanda do Norte.

Sarcástico e bem-humorado, Bono convence quando se autodeprecia e questiona os seus dotes artísticos e a dimensão do que o U2 conquistou e se tornou ao longo de 46 anos de carreira sem trocar de integrantes.

Para quem espera muitas informações a respeito o processo criativo da banda e como é a dinâmica do quarteto obra decepciona um pouco. Bono resvala nos relacionamentos e nos problemas internos (que não form poucos) ao longo do tempo, mas se esforça em fazer acreditar que os quatro são muito amigos até hoje.

O cantor gasta muita energia em reflexões e "filosofices" de boteco como se ainda estivesse perdido em sua vida, em dificuldades para se localizar enquanto ser humano e enquanto artista. 

Não conseguiu chegar a uma conclusão a respeito de sua complicada relação com as linhas cristãs da religião - catolicismo e protestantismo - e, no meio do caminho, decidiu mudar o discurso e abordar o seu trabalho como ativista político dos direitos humanos.
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Neste aspecto, o personagem Bono cresce consideravelmente e, de forma paciente, explica o seu processo de engajamento em várias causas e como se tornou um hábil e contundente negociador na arrecadação de fundos para os pobres do mundo. 

Sua descrição detalhada de como participa desse mundo de ativismo demole aquela ideia de que Bono não passa de um cantor chato e quase "insuportável" quase mete a falar de direitos humanos e ecologia. Emerge muito grande e soberano, angariando a simpatia do leitor ao convencer a respeito da importância das causas que abraçou - sem apelar para a autovalorização de sua participação, que foi crucial em várias situações.

Também acerta no tom quando se refere a Alison Stewart, a mulher que conheceu aos 13 anos, começou a namorar aos 16 e com quem se casou os 22. Confere-lhe o tamanho enorme que merece - mulher de astro de rock, mãe de quatro filhos com idades entre 32 e 21 anos, formada em Ciências Sociais e ativista política de grande estatura.

Na parte musical, o livro vale muito por detalhar o começo o U2 e como era a vida jovem dos quatro integrantes, que formaram uma banda punk que abraçou o hard rock e o engajamento político desde a primeira nota musical e que tinha uma missão: desbancar os conterrâneos dos Boomtown Rats e se transformar na maior banda punk da Irlanda.

Eles não imaginavam, no entanto, que superariam Thin Lizzy, Gary Moore e Van Morrison como os maiores artistas de seu país – em muitos pontos, tão grandes quanto os Rolling Stones em escala mundial.

Os quatro moleques que criaram o U2 na cozinha de uma casinha de subúrbio de Dublin se transformaram em figuras tão proeminentes que transbordaram da música para a política e a economia. O que falta para Bono, o vocalista, ganhar o prêmio Nobel da Paz?

A improvável história de 46 anos de uma banda de rock furiosa e rebelde, saindo dos improváveis subúrbios da Irlanda, ganha um precioso documento com a chegada do livro Surrender: 40 músicas, uma história, o livro de memórias de Bono — artista, ativista e vocalista da banda irlandesa de rock U2.

O cantor mudou de ideia durante o processo de escrita. Deixou de lado a ideia de uma autobiografia formal e optou pelas memórias, sem a necessidade obrigatória de manter uma cronologia. Preferiu associar momentos importantes de sua vida e a da banda a 40 canções importantes que ajudaram a construir o mito dos roqueiros irlandeses.

Se Phil Lynnot (1949-1986), baixista e vocalista do Thin Lizzy, ganhou uma estátua no centro de Dublin, o que será necessário para homenagear Bono – ainda mais se ele realmente for laureado com o Nobel da Paz?

Até certo ponto, o texto surpreende com a narrativa leve e suave, com alguns chistes e piadas, envolvente, com um humor involuntário – nada tão fino quando a prosa de Pete Towshend (The Who), hilário quanto a de Rod Stewart, sarcástico e irônico quanto a de Phil Collins ou terrivelmente sincero e franco quanto a Eric Clapton ou Bruce Springsteen.  

O autor também detalha a jornada acidentada do U2 até se tornar uma das mais influentes bandas de rock do mundo, além dos seus 20 anos de ativismo dedicado à luta contra a AIDS e a pobreza extrema. O subtítulo 40 músicas, uma história faz referência aos quarenta capítulos do livro, cada um com o nome de uma música do U2.

 Entre os temas recorrentes, o desperdício do potencial humano e a fé, descrita por Bono como um sinal extraído do barulho, uma “voz mansa e delicada” que ele ouve mais alto em seu casamento, em sua música e nas causas sociais que defende. 

Ficamos acostumados aos livros bons de gente do rock clássico ou de jornalistas especializados em rock clássico, o que torna um bom livro sobre os ótimo anos 80 uma raridade que precisa ser absorvida. Bono é um artista inteligente e articulado e que tem uma bagagem gigante e preciosa.

"Surrender" peca também, além de ter menos música do que era esperado, por abordar muito pouco a questão política da Irlanda e a violência sectária que dominou o país nos anos 60 e 70. 

O assunto praticamente inexiste em mais de 600 páginas, e justamente no livro cantor que escreveu a letra do megassucesso "Sunday Bloody Sunday", que relembra a morte de 14 pessoas por tropas inglesas em uma manifestação pacífica de católicos em Derry, na Irlanda do Norte.

Até dá para entender a cautela com que o assunto, até hoje, é abordado por quem viveu a época dos embates entre os britânicos e os membros do Exército Republicano Irlandês (IRA).

O IRA foi uma organização considerada terrorista que lutou pela independência do país entre o fim do século XIX e 1922 - e depois contra a divisão entre República da Irlanda (católica, ao sul) e Irlanda do Norte (que reúne seis condados do norte de maioria protestante e que repudia a integração com sul, preferindo a união com a Inglaterra). 

A cautela de Bono, no entanto, é uma lacuna que desagrada em razão da importância que o tema tem para aquele país e para a própria trajetória do U2.

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