terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A Mercearia São Pedro, a alma da vila, finalmente chega ao fim

Enfim, terminou. As portas foram cerradas em um domingo ensolarado tomado por fascistas e ultradireitistas a poucos quilômetros dali. Ninguém que esteve ali sabia o que iria acontecer. Era a última tarde e noite da Mercearia São Pedro, um dos mais tradicionais bares de São Paulo.

Reduto boêmio da zona oeste da capital paulista, existia há 56 anos em uma rua no miolo da Vila Madalena e havia anunciado em 2021 que fecharia as portas por conta da especulação imobiliária e de brigas familiares por administração do imóvel e dos que era vizinhos.

Estranhamente, e para nossa sorte, o bar que era misto de restaurante, livraria e centro cultural resistiu por quase três anos ao assédio de uma construtora, ansiosa por derrubar tudo e erguer um condomínio residencial, e às discussões entre os irmãos Marcos e Pedro Anis Issa Benuthe, que divergiam sobre a venda dos imóveis da família; A Merceraria São Pedro não existe mais.

Em muitos lugares do interior, especialmente em países latinos, diz-se que o bar ou a taverna é a alma da vila. De uma forma parecida, os britânicos também devotam tamanha reverência aos pubs.

Analisando por essa perspectiva, faz todo o sentido a comoção em torno da Mercearia São Pedro. O bar tradicional deixa um buraco gigantesco na cena cultural paulistama.

Toda vez que um ponto de referência importante do ponto de vista cultural e social some, a alma de um lugar morre um pouco. Aquela adega de bairro que desaparece junto com a morte do dono, o teatro pequeno que tanta festa e quermesse abraçou, o boteco de pinga fedorento que reunia os mais antigos moradores…

A Mercearia São Pedro representava tudo isso, mas de uma outra forma. Ao logo de 56 anos de existência, sem muito esforço, tornou-se ponto de encontro e resistência da intelectualidade da cidade, geralmente com viés de esquerda. Sem querer, virou um centro cultural importante já no comecinho dos anos 80.

Mas como pode um boteco estranho, até meio comum, com atendimento ruim e preços meio salgados, se transformar em reduto da cultura e da efervescência de São Paulo?

Por que as pessoas se sentiam bem em beber ali, em meio a buzinas de carros próximos, aos livros do sebo que fazia parte do complexo, junto com as fitas de videocassete e DVDs de filmes? Será que a cerveja estupidamente gelada compensava o mau atendimento?

Nos bons tempos, as pessoas faziam questão de se espremer nos concorridos lançamentos de livros – a imensa maioria jamais seria lida – e eventuais shows ruins de violão e voz recheados com a pior MPB possível.

É a famosa aura de boteco que explica o charme de uma esquina estranha e sem muitos atrativos. É assim que funciona: as auras simples surgem, com seu apelo e sua atração irresistíveis

A Mercearia São Pedro tem essa aura de acolhimento, de pertencimento, de resistência e de disseminação de cultura. Jornalistas, artistas, políticos, professores e estudantes universitários conseguiram imprimir o rótulo de centro cultural a um ambiente que transborda conhecimento.

Não há dúvida que é o centro do bairro, onde as coisas acontecem e onde a vida ganha muito mais vida. São lugares assim que nos fazem perceber a importância da vila, da vizinhança, da escola, dos amigos. A mercearia reunia tudo isso e muito mais.

A pandemia mudou tudo, como era de se esperar. Aprofundou mudanças que já eram vistas desde há muito, com a frequência menor de estudantes e a mudança preocupante do perfil de bebedores dos fins de semana, mais preocupados com o futebol do fim de tarde do que com a educação e a civilidade tão característicos do local.

Nada, no entanto, capaz de destruir a aura de centro cultural – ao não ser que alguém diga que o local vai fechar. E então a melancolia chega e o saudosismo domina as conversas.

Todo o quarteirão será demolido. Como resistir à força da especulação imobiliária, dos tratores vorazes a serviço de novos ricos deselegantemente sofisticados, precariamente educados e culturalmente estéreis?

As redes sociais, que se transformaram em esgoto da humanidade, adoram exagerar dramaticamente algumas mortes e fins. Os mais empedernidos esquerdistas de restaurante japonês, e que não pisam na Mercearia há mais de dez anos, vomitaram muito sobre a “falta de memória” de um país que “despreza a cultura e a educação”. Isso é verdade, mas não no caso em questão.

Lamenta-se o fim de casas importantes gastronomia da cidade, seja por falência, por esgotamento ou porque o aluguel ficou proibitivo. No caso de um centro cultural como a Mercearia São Pedro, a dor costuma ser maior. Entretanto, somem uns, surgem outros, ou melhor, criam-se outros.

O que impede que outro bar legal se torne um novo centro irradiador de conhecimento? E quem disse que a Mercearia vai desaparecer? Por que não pode manter a sua aura em outro lugar da Vila Madalena, no Butantã ou em Pinheiros?

Esbravejar contra a especulação imobiliária desenfreada é uma atitude infantil de quem procura subterfúgios fracos para validar pontos de vista esquálidos em vez de procurar se informar e não passar vergonha.

Por que nunca houve comoção com os desaparecimentos de lugares igualmente legais e, talvez, tão importantes nos bairros de Vila Mariana, Perdizes e Pompeia?

O desaparecimento da Mercearia São Pedro talvez deixe uma lacuna no cérebro de saudosistas, mas certamente não na vida cultural de São Paulo. Outros centros vão surgir ou serão criados/transformados por nós.

Sempre lembraremos com carinho da Mercearia. Se o patrimônio histórico não tombou, então sigamos a vida e transformemos outro bar em nossa casa, em nosso centro político e cultural. Candidatos a novas mercearias não faltam e não faltarão.

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