quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Pitty e Nando Reis, Cássia Eller e Victor Biglione: duplas mistas embelezando o rock e o blues

 Duas duplas mistas embarcando em aventuras inéditas, inóspitas  e interessantes trouxeram um ar de novidade neste final de 2022 - ainda que separados por mais de 30 anos em relação a suas produções, ambas lançadas quase ao mesmo tempo.

Pitty e Nando Reis resolveram se juntar no ano passado para uma turnê muito bem-sucedida que transbordou para o estúdio, rendendo cinco músicas reunidas no EP "Pittynando - As Suas, As Minhas e as Nossas". 

Já o guitarrista Victor Biglione, argentino radicado no Brasil desde sempre, finalmente resgatou as gravações "perdidas" que realizou com Cássia Eller no começo dos anos 90 e as lançou como forma de homenageá-la por conta da data em que ela faria 60 anos. São oito clássicos do blues norte-americano interpretados de uma forma ingênua e com um acento brasileiro inconfundível.

A união de Pitty e Nando foi uma das boas ideias do ano, ainda que aparentemente os mundos fossem opostos, mas não conflitantes. A veia roqueira mais visceral da cantora baiana casou muito bem com o pop classudo e sofisticado do ex-Titãs que costuma namorar com uma MPB mais moderna.

"Na Sua Estante" é o melhor exemplo do bom entrosamento da dupla, em que melodias elegantes e arranjos muito bem elaborados dão um ar de rock inglês dos anos 80. Ficou muito bom, com Pitty explorando áreas de sua voz e interpretação que surpreendem. É um pop sóbrio, que passa longe da breguice e que esbanja sofisticação.

"Pittynando" é um rock que transpira Bo Diddley, em uma batida típica de rock dos anos 50 misturado com blues da melhor estirpe. Música para dançar e curtir numa festa bem animada.

O bom gosto se mantém em "Temporal", que tem uma boa letra e arranjos estupendos de cordas, mas sem a exuberância de "Na Sua Estante", apesar da estrutura imponente da primeira parte. 

O mesmo pode ser dito da versão de "Os Cegos do Castelo", dos Titãs, que teve uma produção sutil que acentuou a delicadeza da interpretação da dupla, mas que ficou reverente demais e pouco acrescentou. A coisa melhora bastante em "Luz dos Olhos", com um dueto esperto e guitarras funkeadas/grooveadas que impõem um balanço irresistível e revelado a boa química entre os dois artistas.

O EP é a demonstração de que o projeto deu muito certo. O entrosamento e os bons resultados no estúdio estimulam a continuidade da parceria.

O blueseiro Biglione venceu a resistência própria e editou finalmente "In Blues", creditado como "Cássia Eller & Victor Biglione". 

São dez canções registradas sem muito polimento, mas de forma bastante satisfatória a ponto de mostrar uma cantora bastante à vontade em um gênero que dominava - sua versão de "I've Got a Feeling", dos Beatles, é sensacional.

A união entre os dois artistas é de uma felicidade estupenda, já que a guitarra bluesy de Biglione pareceu talhada para a interpretação encharcada de malícia, sensualidade e malandragem de Cássia, como em "Hoochie Coochie Man", tremendo clássico na voz de Muddy Waters.

Era para ser só blues, mas os dois inventaram de inserir um jazz com cara de Brasil na versão totalmente suingada de "Got to Get You Into My Life", dos Beatles, uma paixão mútua e que recebeu arranjos inteligentes e bastante criativos. 

"Same Old Blues" e "When Sunny Get's Blue" caminham por outra vertente, a de um blues mais tradicional e e elegante, oferecendo um panorama mais rico em termos de arranjos e sonoridades mais "vintage". Cássia brilha principalmente na primeira. Na segunda, incorpora uma diva americana em uma interpretação jazzística que remete os anos 30 do século passado.

 Os dois artistas flertam com o rock na interessante "If Six Was Nine", de Jimi Hendrix, em versão reverente, mas com bom gosto. Em "I Ain't Supertitious", de Willie Dion, o resultado é melhor, com Cássia mais solta e abusando  de sua versatilidade vocal.

Curiosamente, foi a versatilidade e o talento de Cássia Eller que engavetaram o projeto. A gravadora dela na época, a PolyGram, não queria deixá-la "estigmatizada" como cantora de rock, o que efetivamente ela era. 

De acordo com pessoas que trabalharam com ela, a cantora não se opôs ao arquivamento e nunca considerou o seu lançamento enquanto esteve viva. Ela morreu no final de 2001, aos 39 anos, sem deixar instruções a respeito de tais gravações. 

Em entrevista ao jornal O Estado de Minas, Biglione disse que foi procurado pelo filho da cantor, Francisco, para que resgatasse as gravações para lançá-las no dia do aniversário de 60 anos dela, em 10 de dezembro.

O guitarrista lhe contou que gostaria de gravar rock, blues e jazz. "Acho que sua voz encaixa perfeitamente nesse projeto, topa.? E ela ali, muito tímida e na dela. Disse que o repertório seria com canções dos Beatles e Jimi Hendrix, entre outras feras."

Cássia topou. Victor Biglione tinha data no Circo Voador, e os dois ensaiaram dali a três dias. "Cheguei ao estúdio com a banda completa, tal como está no disco, dois teclados, metais, guitarras... Quando ela abriu a boca, ‘comeu com farinha’, negócio impressionante", relembrou o músico no jornal mineiro.

Participaram do projeto Ricardo Leão (teclados), Marcos Nimrichter (órgão), André Gomes (baixo elétrico), Nico Assumpção (baixo acústico), André Tandeta (bateria), Zé Nogueira (sax-alto e soprano), Chico Sá (sax-tenor), Zé Carlos Ramos (sax-alto), Bidinho (trompete) e Serginho Trombone (trombone). 

Mais do que merecido, "In Blues" é o melhor tributo que poderia ser feito a Cássia Eller. Ouça "Prison Blues"  e se emocione com a alegria que ela demonstrou ao cantar com vontade, acrescentando "estripolias" vocais e tentando subverter a estrutura da música.



https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2022/12/10/interna_cultura,1431631/disco-inedito-com-victor-biglione-marca-os-60-anos-da-cantora-cassia-eller.shtml

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