sábado, 12 de setembro de 2020

Crônicas ligeiras: uma tarde com Stevie Ray Vaughan e Albert Collins em um local improvável

Marcelo Moreira

Contra as orientações da ciência e do bom senso, a vida vai lentamente retomando alguma normalidade, infelizmente, ao custo de centenas de milhares de vidas perdidas para a covid-19. Já são 130 mil mortos em seis meses, a maior tragédia que já abateu o Brasil.

Ao longo da avenida sinuosa de um bairro de classe média, perto do centro de uma cidade, qualquer boteco ficou lotado por conta do calor estranho em pleno inverno. Ninguém resistiu a uma cerveja gelada na mesinha da calçada, por mais que isso seja uma imbecilidade.

A velha taberna ficou fechada por quatro meses. São três mesinhas na parte interna, que não tem mais do que 12 metros quadrados, contando com o balcão, além de outras três na calçada e as pequenas prateleiras rodeando a frondosa árvore quase centenária.

A televisão, como sempre, repete sem cessar alguns clipes pré-selecionados de Eric Clapton e da banda paranaense de blues Milk'n'Blues. 

O calor insuportável não deu trégua, mas nem as freadas constantes dos ônibus na avenida foram suficientes para atrapalhar a tarde mágica quando Stevie Ray Vaughan apareceu na tela, tocando alguns de seus sucessos em um palco japonês.

Por alguns momentos, a vida parecia entrar nos eixos, ou melhor, retornar ao norma. O velho boteco de bairro, dos irmãos portugueses, retomava a tradição de exibir o melhor blues possível para a clientela de sempre, sendo poucos eram capazes de entender o que estava acontecendo.

"Por que não põe samba nesta merda?", gritou um lá de fora, apenas para provocar. Uma mulher de uns 60 anos embarcou na onda, mas a sério, e pediu sertanejo. Foi solenemente ignorada, como deveria ser.

O palmeirense que não sai de lá, feliz da vida com a vitória sobre o Corinthians, e mais dois pequenos empresários do bairro pararam de conversar imediatamente. 

Degustaram em silêncio e curtindo bastante o hino "Pride and Joy" e depois teceram elogios ao guitarrista quando "Superstition" veio em seguida, para encerrar a trinca com "Mary Had a Little Lamb".

Stevie Ray Vaughan e Albert King juntos em 1984 (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Mal deu tempo de respirar e vieram duas músicas com o magnífico Albert Collins, guitarrista incendiário que fez discípulos na Inglaterra nos anos 60 e 70. Vaughan coltaria ao vídeo, desta vez acompanhado de Albert King, outro clássico guitarrista de blues.

Entre cervejas, bolinhos de carne e de porções de queijo, o blues contaminou aquela parte improvável da cidade, em uma improvável Grande São Paulo, em uma calorenta tarde de sexta-feira, em plena pandemia.

Ok, não deveria ter ninguém ali. O bar nem deveria estar aberto. Nenhum bar e restaurante e shopping deveriam estar abertos, assim como nenhum ser humano decente deveria ter lotado estradas e praias em feriados.

Mas foi um afago na alma passar na velha taverna, tomar uma boa cerveja e ver na telinha Stevie Ray Vaughan massageando os ouvidos em meio a um mar de ignorância e de falta de decoro.

O velho bluesman texano, morto há 30 anos, também é um soco na cara de gente estúpida que desdenha da pandemia e apoia as políticas destrutivas e genocidas do atual governo federal deste triste país.

São os idiotas que são incapazes de ao menos respeitar a arte que desconhecem ou que, por ventura, não os agrade. A taberna tem mais de 20 anos de existência e sempre foi um porto seguro para amantes de rock, blues e música brasileira de boa qualidade. Desde sempre pagode, axé e sertanejo foram rechaçados por decisão sábia da dupla de irmãos. 

É um sopro de bom gosto poder desfrutar de tardes gostosas ou noites agradáveis ao som de Eric Clapton, B.B. King, Robert Cray, Rolling Stones, Celso Blues Boy, Lancaster e outras feras do blues e do blues rock.

O blues não alivia e entra rasgando nos ouvidos dos incautos que se orgulham de sua própria ignorância. Incomoda porque obriga a pensar, coisa que essa gente bolsonara não está acostumada fazer. 

Na tarde de sexta, foram dois energúmenos os que tomaram invertidas ao falarem que não gostavam de "música estranha de preto", meio na brincadeira, meio sério. Um deles tinha adesivo de Bolsonaro na caminhonete e do festival de Barretos. 

Eu e mais dois ouvimos a bobagem. O clima pesou porque um amigo dos dois os repreendeu. Incomodados, foram embora. 

O blues não alivia. Vai direto na veia. Stevie Ray Vaughan gritou na tela que exigia respeito e impôs um padrão mais elevado de apreciação de música e arte naquele momento. Ele olhou por nós ali no final de tarde, na Taberna Vieira (avenida Getúlio Vargas, 1.630, Baeta Neves, São Bernardo-SP). Amém, mestre SRV.


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