Marcelo Moreira
Imagine um país inteiro parado, hipnotizado por conta de uma sessão do Congresso Nacional que discutia e debatia o conteúdo de letras de músicas pop em vez do impeachment de um presidente. Seria possível uma bobagem dessas?
Sim, foi perfeitamente possível e na maior e mais antiga democracia em atividade, os Estados Unidos, 35 anos atrás, em uma das situações mais ridículas que o mundo das artes foi submetido.
Em uma tentativa tosca de censurar letras de músicas de rock e rap, os principais alvos - mas que certamente se estendia para teatro e cinema, mulheres ultraconservadoras de senadores, alguns do partido Democrata, fizeram tanto barulho que conseguiram a formação de uma comissão mista do Congresso para analisar a questão.
Foi um fato tão extraordinário por ser tão absurdo que chamou a atenção do mundo, sendo marcante por ser estapafúrdio, pela humilhação dos parlamentares e por alçar dois artistas do rock à condição de "intelectuais" e ferrenhos defensores da liberdade de expressão. Franka Zappa e Dee Snider (vocalista do Twisted Sister) depuseram no Congresso e viraram heróis.
Os congressistas foram humilhados e as mulheres carolas e conservadoras foram ridicularizadas, mas aparentemente se consideraram vitoriosas: queriam criar um "selo" e LPs avisando sobre o "conteúdo" explícito nas letras de rap e rock. Elas conseguiram isso, mas foi um um tiro no pé, pois isso só aumentou a curiosidade sobre tais obras e explodiu as vendas de tais produtos.
O efeito colateral é que obrigou artistas importantes a deporem em um comitê do Senado sobre assunto – uma vergonha em todos os sentidos, mas que garantiu momentos hilários, como Dee Snider humilhando políticos burros e ignorantes em seu depoimento.
Desde o final do ano passado essa nojeira de selo vem sendo articulada no Brasil por lideranças políticas ligadas a seitas evangélicas -
leia mais aqui.
Como a maior democracia mais cintilante do mundo, onde a liberdade de expressão e qualquer tipo de liberdade é sempre exaltada de todas as formas, pôde mergulhar em tal obscurantismo, até mesmo políticos democratas de viés um pouco mais progressista?
Os Estados Unidos tinham acabado de sair de uma corrida eleitoral acirrada em 1984, quando o presidente republicano Ronald Reagan, ex-governador da Califórnia e um ex-ator de cinema medíocre, foi reeleito presidente.
O conservadorismo em todos os sentidos estava exacerbado, principalmente nos costumes, em uma tentativa de manter o eleitorado alerta e alinhado, com a religião ganhando mais proeminência no cenário político e o povo do interior sendo mais valorizado - exatamente o cenário que elegeu Donald Trump em 2016.
Eleito, Reagan aprofundou o apoio às tendências mais medievais do conservadorismo norte-americano e estimulou manifestações cada vez mais agressivas contra o "comunismo" e os "ataques aos valores norte-americanos", ao mesmo tempo em que pressionava, na política externa, a União Soviética, que começava a se despedaçar. Não foram poucas as crises entre as duas superpotências nucleares entre 1981 e 1985.
Os bastidores políticos de Washington contam, por meio de reportagens de jornais posteriores, que já havia ma clima bem desfavorável ao rock e às artes desde a eleição anterior de Reagan, em 1980, quando a maioria dos artistas se posicionou contra ele.
Havia um consenso entre os políticos conservadores de que o mundo das artes e, especialmente, rock e rap, tinha crescido demais na influência de todos os tipos na juventude americana e que isso se refletiria contra os republicanos no futuro. Portanto, a campanha do "selo" de advertência seria parte de um movimento mais articulado de bastidores para criminalizar a arte e tentar "controlá-la".
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Dee Snider (FOTO: DIVULGAÇÃO) |
Outra suspeição foi a de que os "protestos" das mulheres conservadoras teria sido inflado artificialmente pelos políticos republicanos para dar um ar de espontaneidade à iniciativa.
E com isso surgiu a PMRC (Parents Music Resource Center), ou "Centro de Recursos Musicais para os Pais", criado por quatro mulheres que ficaram conhecidas como "as esposas de Washington"”, já que eram todas casadas com figuras importantes da capital do país.
Essas mulheres decidiram que seriam o "oráculo" da família norte-americana para dizer o que crianças e adolescentes poderiam ouvir, ler e ver, "alertando" os pais sobre o "conteúdo nocivo" de vários produtos culturais.
E o estranho é que os republicanos, que mesmo conservadores sempre lutaram pelas liberdades absolutas em todos os níveis do cotidiano americano, endossaram essa tutela estúpida das vontades individuais de seus filhos.
Quem eram essas mulheres estúpidas? Tipper Gore, companheira de ender obras com o tal selo Al Gore, então senador e depois vice-presidente de Bill Clinton, Susan Baker, esposa do secretário do Tesouro James Baker, Pam Howar, mulher do corretor Raymond Howar, e Sally Nevius, esposa de John Nevius, presidente da Câmara Distrital do distrito de Columbia, onde fica a capital dos Estados Unidos
Algumas audiências públicas foram realizadas no Congresso para debater o assunto, mas nada demoveu as mulheres conservadoras de conseguirem aprovar a criação do selo "parental advisory", que dava o alerta para os pais sobre o "conteúdo impróprio" de músicas e discos.
De forma previsível, o resltado foi o oposto do pretendido, já que aumentou o interesse dos jovens pelas obras "proibidas" tivessem explosão de vendas, mesmo que grandes redes de varejo aderissem à campanha e se recusassem a vender produtos com o tal selo ridículo.
O PMRC foi extinto ao final dos anos 90 mas o selo ficou, ainda que apareça em diferentes formatos, como na contracapa de um álbum, ou como um detalhe minúsculo em uma já pequena capa de disco nos serviços de streaming.
Mesmo com depoimentos contundentes a favor da liberdade de expressão, o rolo compressor conservador teve vitórias efêmeras e conseguiu colocar a música e a liberdade de expressão na defensiva.
Uma lista de artistas que "mereciam o alerta" foi elaborada pelo PMRC, incluindo Judas Priest, Black Sabbath, Motley Crue, Ice-T e muitos outros.
As audiências não deram em nada e temporariamente criminalizaram a arte, mas as coisas logo voltaram ao normal, com vendas de CDs e LPs em crescimento e ninguém se importando com o tal selo de advertência. Entretanto, possibilitou a ascensão de Dee Snider como uma liderança inequívoca do rock e a música, revelando um artista inteligente, articulado e bem informado.
"Não sei se é manhã ou tarde. Eu vou dizer duas coisas. Bom dia e boa tarde", disse Snider em seu depoimento, em setembro de 1985, sem nenhum pingo de ironia. "Meu nome é Dee Snider. S-n-i-d-e-r. Eu gostaria de falar ao comitê um pouco sobre mim mesmo. Tenho 30 anos, sou casado, tenho um filho de 3 anos de idade. Eu nasci e cresci como um cristão e eu ainda creio nos mesmos princípios básicos. Acredite ou não, eu não fumo, não bebo, e eu não uso drogas."
A partir de então, o vocalista do Twisted Sister demoliu os detratores do rock e humilhou os depredadores da liberdade de expressão.
"Eu toco e componho as canções para uma banda de rock and roll chamado Twisted Sister, que é classificada como heavy metal, e eu me orgulho de escrever canções que sejam consistentes, seguindo assim minhas mencionadas crenças. Desde que eu pareço ser a única pessoa a ser abordado a esta comissão de hoje, da qual eu tenho sido alvo direto de acusações, presumivelmente responsável, gostaria de aproveitar esta ocasião para falar sobre uma nota mais pessoal e mostrar o quão injusto todo o conceito de lírica interpretação e julgamento pode ser, e quantas vezes isso pode chegar a pouco mais de assassinato de caráter. Sinto que acusações deste tipo são irresponsáveis, prejudiciais à nossa reputação, e caluniosas. A beleza da literatura, poesia e música é que eles deixam espaço para o público a colocar a sua própria imaginação, experiências e sonhos em palavras."
O cantor tripudiou sobre a pobre Tipper Gore, ignorante sobre assunto de cultura pop e com problemas para interpretar letras de músicas. Snider relembrou, anos depois, em uma entrevista a uma emissora de rádio, a confusão e os problemas de "interpretação" da letra de "Under the Blade" (sob a lâmina), do Twisted Sister.
"A música mexe com a imaginação das pessoas e as faz pensar o que quiserem. Essa música fala sobre uma cirurgia na garganta de um integrante da banda, o guitarrista Eddie Ojeta, e o medo que ele tinha do procedimento. A senhora Gore procurou sadomasoquismo na música e o encontrou. Quem procurar referências cirúrgicas também irá encontrá-las."
No fim das contas, o selo foi instituído, mas foi só. O medo de retaliações e de censura prévia não se justificou e o mercado praticamente ignorou as investidas conservadoras posteriores, embora muitos artistas continuassem a se manifestar contra o tal selo.
O que aparentemente foi uma vitória conservadora logo desmoronou diante da indiferença do mundo, que valorizou muito mais a luta pela liberdade de expressão e os discursos de Frank Zappa, Snider e do cantor country folk John Denver.
Trinta e cinco anos depois, as tentativas de censura prévia e tutela reaparecem no Brasil e em outras partes do mundo. As importantes lições dadas pelo rock em 1985 não foram aprendidas por parte da sociedade, infelizmente.
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