segunda-feira, 15 de maio de 2023

Clemente, o menino punk furioso e engajado, chega aos 60 anos



O garoto negro da zona norte de São Paulo ainda era muito novinho para entender o que queria dizer um verso de uma música dos Rolling Stones de 1968: "O que pode fazer um garoto pobre a não ser criar uma banda de rock'n'roll?", vociferava Mick Jagger em "Street Fighting Man".

Quando decidiu que era hora de agir, inconscientemente Clemente Tadeu Nascimento abraçou o lema e praticamente criou o punk rock brasileiro ali, do outro lado do rio Tietê, ao lado de algumas das muitas gangues da periferia que orbitavam pela Freguesia do Ó, do bairro do Limão, da Vila Carolina e das imediações..

O mundo punk paulistano era apocalíptico, violento, raivoso, furioso, infantil e sem esperança, mas, ao mesmo tempo, era inquieto, criativo e sedento por novidades e liberdade. 

É assim que Clemente construiu seu mundo e sua história dentro da música brasileira - resistindo, esbravejando, chutando portas e demolindo preconceitos. 

O garoto negro da periferia paulistana se tornou um personagem de sua própria trajetória e mesmo não gostando da palavra, virou ícone de pelo menos três gerações de punks, de roqueiros e de gente engajada e ativista. 

Clemente se tornou tão emblemático quando Mano Brown, dos Racionais MC's, a ponto de ser impossível medir o impacto de seu trabalho, de seu discurso, de seu ativismo.

Quase todo mundo gosta de Clemente e de sua banda, Os Inocentes, e de sua participação há anos na Plebe Rude. Ele chega aos 60 anos sendo admirado por quase todo mundo, mas respeitado - e muito - por todos. Joao Gordo, dos Ratos de Porão, é a cara do punk furioso e violento: Clemente, ao lado de Redson, do Cólera (morto em 2011), é a cara do punk engajado e ativista.

Tivemos a sorte ter um Clemente no punk nacional. Se não existisse, teria de ser criado. Com o amigo Marcelo Rubens Paiva, escritor, conseguiu sintetizar de forma convincente a importância e a relevância da cena punk paulistana dentro do universo caudaloso e veemente da cultura pop nacional.

A 'autobiografia'

"Meninos em Fúria" (editora Objetiva), livro escrito pelos dois amigos, tinha a pretensão de ser a biografia de Clemente, baixista e vocalista dos Inocentes, banda seminal do rock nacional. 

Alguma coisa mudou no meio do caminho, e o texto se tornou uma compilação de memórias dos dois, uma crônica punk de dois ex-punks de meia idade, mas com muita história para contar. 

Virou um documento fundamental para entender a gênese do movimento e de como era ser um adolescente em bairro periférico, pobre e que, em todos os sentidos, exalava uma marginalidade que só poderia explodir no movimento punk, ainda que esse reconhecimento só tenha aparecido um pouco mais tarde.

O que aparentemente poderia ser um defeito da obra se torna a sua grande virtude. Paiva, jornalista e escritor veterano, autor do best-seller "Feliz Ano Velho", mostra que tem faro para contar anedotas e histórias cotidianas.

O que aparentemente poderia ser um defeito da obra se torna a sua grande virtude. Paiva, jornalista e escritor veterano, autor do best-seller "Feliz Ano Velho", mostra que tem faro para contar anedotas e histórias cotidianas.

Sua prosa se dá bem quando assume o caráter autobiográfico, o que eleva "Meninos em Fúria" em termos de qualidade – é provavelmente seu melhor livro desde o já referido best-seller, sua estreia na literatura. 

Mesmo sendo uma crônica de memórias de um tempo de certa forma longínquo, o livro é centrado na figura de Clemente, que é o fio condutor do retrato de uma cena a princípio curiosa que toma tal proporção a ponto de se tornar fenômeno pop cultural.

E o mentor dos Inocentes tem importância crucial no surgimento do tal movimento "punk", catalisando a fúria e a ira de uma juventude desiludida e sem futuro em um momento singular - a ditadura militar brasileira estava nos estertores, mas "esticava o fio" e se recusava a morrer. 

Paiva e Clemente acertam ao manter a estrutura cronológica linear do livro, retratando a infância de Clemente e de sua numerosa família no centro de São Paulo, depois na zona norte, no bairro do Limão.

As breves informações sobre o menino Clemente têm ares de introdução para logo chegar ao que interessa, na visão do engajado e igualmente raivoso Marcelo Rubens Paiva. As frases são curtas, revelando uma urgência em contar uma boa história entre tantas boas histórias. 

As intervenções de Clemente, sempre em longas digressões, contrastam com a escrita rápida do amigo escritor.

Entremeando o que é o resultado de uma longa e gostosa conversa, aparecem trechos explicativos a respeito do contexto histórico da economia, política, cultura e da sociedade dos anos 70, 80 e 90 do século passado. 

Crônicas saborosas

O ponto de vista de esquerda predomina na narrativa, mas Paiva acerta na imensa maioria dos fatos, seja nos comentários, seja na descrição de um mundo em decomposição e em transição – se o contexto político às vezes é raso e apenas resvalado, o econômico ganha relevância e mais conteúdo, mostrando de forma concisa e correta o caos econômico em que o Brasil estava mergulhando entre 1975 e 1988.

A memória um pouco embaçada dos dois amigos, que se conheceram em 1982 – logo após o acidente que deixou o escritor tetraplégico -, deixa algumas lacunas a respeito de como Clemente se envolveu com a música.

Também há dúvidas de como, efetivamente, o músico lançou as pedras iniciais do que se convencionou chamar de punk rock nacional, diferente e com características muito próprias, se comparado com o movimento na Inglaterra e nos Estados Unidos.

O formato crônica também ajuda a entender as complexas relações entre integrantes das bandas punks, destas com o restante do então incipiente rock nacional e o xadrez intrincado das rivalidades entre as dezenas de gangues de moleques que se enfrentavam e se massacravam na periferia e nas imediações de casas de show.

O panorama cultural descrito pela dupla é outro ponto forte da obra, já que os dois viveram a época e conviveram com todas as pessoas importantes e relevantes, de músicos de outras bandas a produtores, executivos, empresários e jornalistas da área musical. 

A amizade entre Clemente e Paiva, entretanto, abre espaço para abordar assuntos espinhosos, como as épocas de vacas magérrimas para os Inocentes, suas dificuldades financeiras ao longo de quase 40 anos de estrada – desde a pioneira Restos de Nada e a tétrica Condutores de Cadáver -, além de uma conversa franca a respeito do que consideram a morte da cena punk a partir da grande encrenca que ocorreu ao final do festival "Começo do Fim do Mundo", no Sesc Pompéia, em 1982.

Se não há uma grande novidade revelada, sobram histórias de um cotidiano da juventude excluída dos anos 80 que formaram o punk paulistano, o mais relevante no Brasil.

As crônicas indicam que, por trás de todas as tretas e toda a música, havia muito esforço, muito trabalho, muita energia e muita paixão para superar a falta de grana, a perseguição da polícia militar, o preconceito generalizado e um atraso cultural revoltante.

"Meninos em Fúria" tem o grande mérito de jogar luz sobre a garotada excluída da periferia de São Paulo que criou sua própria diversão e seu próprio modo de vida – e sua própria música. As informações sobre o punk rock de São Paulo estão esparsas por reportagens de jornais e revistas ou em teses universitárias. Faltava um livro que costurasse essa história de maneira consistente e coerente.

O livro de Clemente e Paiva está longe de ser a obra definitiva sobre o tema, mas atingiu em cheio o seu objetivo, alterado no andar da carruagem, ao que parece: deixou de ser uma mera autobiografia para se tornar uma crônica muito boa de parte da juventude dos anos 70 e 80.

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