terça-feira, 2 de maio de 2023

'Quadrophenia', a grande ópera-rock de The Who, completa 50 anos

Frustração, queda, cura e redenção. Um roteiro comum em quase todas as existências desse planeta, mas que raramente consegue ser bem traduzida nas obras de arte de todos os tipos - principalmente no cinema e no teatro.

O músico inglês Pete Townshend é obcecado pelo tema, a ponto de abusar dele em suas principais obras conceituais - "Tommy" e "Quadrophenia", com a sua banda, The Who -, além de "The Iron Man", "White City" e "Psychoderelict", na carreira solo.

"Quadrophenia" é, até hoje, 50 nos depois, a sua obra máxima. lançado em 1973 como LP duplo, com longa duração, é o único álbum do Who em que todas as músicas são composições suas. 

Sua missão era clara: superar o êxito estrondoso de "Tommy", de 1969, considerada a primeira ópera-rock da história (fato contestado por muita gente), e a decepção do fracasso de "Lifehouse', de 1971, projeto cujas "sobras" se tornaram "Who's Next", o melhor trabaho da banda e um dos melhores de todos os tempos no rock.

Com habilidade, inteligência e maestria, Townshend construiu um roteiro simples, baseado na experiência pessoal e nade vários amigos de adolescência: as dores do crescimento, na transição para a vida adulta, e as diferentes formas de lidar com a "terra arrasada da própria adolescência", como ele e o vocalista Roger Daltrey bem cantaram no verso principal  de "baba O'Riley", um dos pontos altos de "Lifehouse/Who's Next".

Não são poucos os que colocam a segunda ópera-rock do Who como uma das obras mais impactantes e importantes do rock, até mesmo mais do que "Tommy". 

O guitarrista brasileiro Edgard Scandurra, da banda Ira!, sempre que pode exalta a importância da obra na sua vida, quando a ouviu sem parar quando jovem, se recuperando de problemas de saúde no hospital e em casa, a ponto de o fazer se decidir, muito cedo, a se tornar músico.

Se "Tommy" era uma fábula alegórica - quase um realismo fantástico - de um menino cego, surdo e mudo campeão de fliperama (pinball) que se  cura depois de uma iluminação mística e vira líder de seita religiosa, "Quadrophenia" desce ao plano da vida real e aborda questões éticas, filosóficas, psicológicas e psicanalíticas a respeito do fim da adolescência e a chegada à vida adulta.

O nome é uma modificação/adaptação a partir de uma noção não-científica da esquizofrenia, descrita or Townshend como uma doença de personalidade múltipla; o protagonista da ópera sofre de personalidade quádrupla, cada uma delas associadas a um integrante do The Who.

O protagonista, Jimmy, filho de pais de classe operária e sem muito talento para os estudos, rebela-se contra o destino já traçado pelo sistema de "castas" econômico-financeiro dos anos 60 na Inglaterra canaliza suas frustrações em brigas de gangues e shows musicais de bandas de rock iniciantes.

A época situa-se entre 1963 e 1965, quando a música pop explode no mudo empurrada e embalada pela beatlemania. O pano de fundo é o submundo dos mods, na qual o Who, Small Faces e The Kinks foram inseridos por um tempo. 

Eram jovens da classe operária identificados, ironicamente, com o mundo liberal dos ricos - do qual eram excluídos. Gostavam de vestir bem, de andar de motocicletas e lambretas do tipo italiano e de ouvir blues e rhythm and blues/funk americanos, tendo como um dos ídolos James Brown. 

Os mods eram rivais mortais dos rockers, que se vestiam como s jovens americanos da década anterior, com muito couro, abusando da violência, do sexismo e do machismo.

O escritor inglês Nick Hornby, autor de "Febre de Bola" e "Alta Fidelidade", disse certa vez, em uma entrevista, que "Quadrophenia" é o melhor retrato da época e do mundo mod, que teriam um "revival" entre 1979 e 1980, em plena era punk, com a banda Th Jam liderando o retorno do "movimento".

Townshend foi muito feliz em retratar as agruras juvenis de Jimmy (dele mesmo, de certa forma) na dificuldade em lidar com pais, professores, namoradas que o menosprezavam e valentões rockers sedentos por espancamentos. 

Quando percebe que o seu ídolo local, que posava de durão e líder mod, na vida real tinha um emprego 
ruim e subserviente de mensageiro e carregador de malas em um hotel decadente de uma cidade litorânea, decide romper com tudo e todos ao atirar sua lambreta de um penhasco. Era a libertação e a cura de um mundo podre e opressivo, com a subsequente redenção.

Musicalmente, er superior e mais ambicioso do que "Tommy". O uso de sintetizadores e fitas pré-gravadas foi ampliado, assim como a profusão de sons de vários ambientes. 

As canções foram mais trabalhadas e tinham passagens intrincadas e mudanças de ritmo complexas que dificultavam a execução das canções ao vivo. O problema foi tão grave na turnê de divulgação que a banda abandonou no meio os recursos pré-gravado.

É o álbum mais diversificado do grupo, evidenciando a genialidade do guitarrista Pete Townshend. Tem música instrumental quase jazzística, como "The Rock" e "Quadrophenia"; tem rock pesado, com "The Real Me" e "The Punk Meets the Godfather", a melhor de todas; tem rock progressivo, como a maravilhosa "Love, Reign O'e Me", a a intensa e estupenda "Doctor Jimmy"; tem "sketch" humorístico, com "Bell Boy", com parte da canção cantada pelo baterista Keith Moon. 

No lado 2 do LP duplo, a sequência matadora que mostra a genialidade operística do compositor, com a sequência teatral com interpretações inspiradas de Roger Daltrey em "The Dirty Jobs", "Helpless Dancer" (com a  impagável voz empostada do cantor), "Is It in My Head" e "I've Had Enough".

Sucesso na Inglaterra e na Europa, "Quadrophenia" foi recebido com frieza nos Estados Unidos, embora tenha elevado sensivelmente o patamar artístico da banda. Virou filme em 1979 com Sting (vocalista e baixista do The Police) como um dos protagonistas e ganhou montagens de teatro nos Estados Unidos e na Inglaterra, além de uma versão sinfônica adaptada para orquestra por Rachel Fuller, mulher de Townshend e pianista muito respeitada na Grã-Bretanha. A banda já o tocou na íntegra em duas turnês desde 1996.
 
 Frequentemente, o álbum é citado como um dos pontos altos do rock, daquelas obras que confirmam pela enésima vez que rock é, sim , arte da melhor que se pode produzir. 

Depois de 50 anos, ainda é bastante atual, já que retrata as mesmas crises existenciais de jovens cada vez mais numerosos que se sentem deslocados, desprezados e excluídos  em um mundo bastante difuso e difícil de decifrar e encarar. 

A diferença perigosa nestes tempos complicados do século XXI é uma quantidade imensa de adolescentes e jovens está reclusa em seus quartos sem saber lidar com quadros depressivos e mergulhados nas armadilhas das vidas virtuais por meio de seus smartphones e acessos ilimitados á internet. Isso Townshend não poderia jamais prever, mas acertou ao retratar os problemas da terra devastada da adolescência desde sempre.

Do ótimo jornalista carioca Luiz Antonio Mello, uma rápida descrição do roteiro de "Quadrophenia", obra da qual é fanático:

O filme é ambientado em 1963 e conta a história de um garoto chamado Jimmy Cooper (vivido pelo ator Phil Daniels) que, com a sua lambreta, vive rodando com os outros colegas mods (expressão de que vem de moderns), filhos de operários, que são molestados e perseguidos pelos rockers, de classe média, montados em potentes motocicletas. Jimmy briga em casa e é expulso com tapas na cara, chamado de vagabundo. Vai trabalhar, se defende de uma injustiça, manda o chefe tomar no… e é demitido. Se apaixona por uma garota, mas durante uma viagem do bando a Brighton, balneário onde rolou de fato uma batalha campal envolvendo rockers e mods, dezenas de presos e feridos, ele flagra a namorada com um cara dando amassos num beco.

E as rejeições vão se acumulando, Jimmy ingerindo cada vez mais doses cavalares de anfetaminas, até perceber que o único sentido de sua vida é o bando, a ideologia mod. Bando este que tinha um líder, rebelde radical que no filme é vivido por Sting, admirado, cultuado por Jimmy Cooper. A lambreta do personagem de Sting é cromada, cheia de espelhos, enfim, "cavalo" de um verdadeiro líder.

Até que um dia, solitário e atravessando mais uma crise de angústia, Jimmy vê a lambreta do líder encostada em frente a um hotel. Pior: flagra o próprio líder anarquista trabalhando como carregador de malas ("Bell Boy"), dizendo "sim, senhor", "sim, senhora", recebendo gorjetas, enfim, um capacho social. Indignado, Jimmy espera Sting entrar e rouba a lambreta dele. Sem família, sem mulher, sem trabalho, sem grupo de amigos, decide se atirar de uma escarpa britânica, com mais de 50 metros de altura e guiando a lambreta do personagem de Sting. Mas (há sempre um mas), Townshend deixa em aberto se Jimmy Cooper morreu pois a lambreta cai no abismo vazia.

Os danos das rejeições são profundamente tratados nessa obra que a crítica mundial classificou como "drama". Aos que perguntam se é uma autobiografia de Townshend, a resposta é não. Aos que perguntam se retrata a adolescência de mais de 80% dos fãs do Who, com certeza a resposta é sim.

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