terça-feira, 9 de maio de 2023

Resistindo e encantando, finalmente Rita se tornou a real 'Santa Rita de Sampa'

Muitos de nossos heróis morreram de overdose, e nossos inimigos estiveram no poder até há pouco, mas era sempre bom olhar para o lado, para a pilha de discos e CDs, para dial do rádio, e saber que podíamos ouvi-la com toda a sua graça, sutileza e irreverência 

Era bom saber que ela estava ali, por perto, para nos lembrar de como o rock sempre nos salvou, de como a música sempre nos ajudou, e de como a arte é essencial para para viver plenamente. 

A discrição não combinava muito com Rita Lee, a musa do rock que morreu nesta quinta-feira, aos 75 anos de idade, em decorrência das sequelas de um câncer no pulmão.

Ver, ouvir e desfrutar do trabalho de Rita foram um privilégio imenso, que nem mesmo uma megaexposição no MIS sobre sua carreira foi capaz de abarcar.

Desde que se recolheu ao lar, definitivamente aposentada, Rita Lee fez falta por sua ousadia,  irreverência e inteligência. Ainda que por vias tortas, é uma ilha de lucidez em um mar de ignorância agravado pelos tempos bolsonaros de triste memória. 

Seu sorriso sarcástico e sua fina ironia sempre foram armas contra a estupidez. Sua música sempre foi um porto seguro para o bom gosto e nos redimiu dos duros tempos em que a decência e a civilização foram agredidas.

Mas Rita Lee nunca soube cantar, e sua voz era pequenina, ainda dizem os ignorantes. E ainda assim ela foi a maior cantora de rock que já nasceu no Brasil, para desespero dos detratores. 

Ela brincava com essas "máximas" em sua autobiografia que virou best seller. Até pode ser verdade, mas que liga par isso?  

Inteligente, matreira, malandra, cáustica, ingênua, detalhista, meticulosa, oportunista. Já a chamaram de todos os adjetivos possíveis, e o que sobra de tudo isso? 

Uma obra de respeito e uma personalidade poderosa. Assim como os guitarristas ambicionam serem reconhecíveis no ato por seu timbre e estilo de tocar, muita gente sonha em ser ouvida imediatamente quando falava ou se manifestava de alguma forma.

É o caso de Rita: quando ela falava, tínhamos de ouvir. Esqueça o folclore em torno da cantora e as anedotas que ela mesma contou de forma saborosa em seu primeiro livro. Rita tem autoridade que o rock lhe conferiu e a história referendou. 

Chutada dos Mutantes em 1972, foi estratégica e cirúrgica ao elaborar sua carreira musical a seguir e acertou em cheio. O tempo mostrou que ela estava sobrando na banda e que sua trajetória extrapolou o máximo que o quarteto tinha alcançado.

Há quem pense que ela ficou maior do que os Mutantes. Pode até ser que os números digam isso, mas o fato é que a banda optou por ser cult, e ela, por ser pop. Alguém venceu? 

Música não é e nem nunca foi uma competição, mas a moça se deu bem, muito bem, talvez muito melhor do que todos imaginavam – e, dependendo do parâmetro e do ponto de vista, muito melhor do que os ex-companheiros.

Os 75 anos de irreverência de Rita foram um legado imenso de inteligência e bom gosto dentro do rock e do pop – deu uma cara para esses gêneros no Brasil, abrindo uma avenida de influência para todos os artistas que vieram a seguir.

 A divertida Santa Rita de Sampa soube como poucos como navegar em águas turbulentas e perigosas ao mesmo tempo em que entregava tudo bem feito e redondinho.

Apostou na ousadia quando isso era pecado, zombou da repressão com elegância em tempos de medo e trevas e mostrou o caminho quando tudo parecia encalacrado. 

Rita também criou um feminismo debochado sem os dogmas e as amarras da ideologia. Mostrou como curtir a vida em meio a terremotos e como sobreviver aos descaminhos.

Sobrevivente, ajudou a ensinar a nossa geração a gostar de rock, a aumentar o som e a confrontar a caretice com descontração e esperteza maliciosa. 

Existem poucas coisas tão rock'n'roll. Existem poucas pessoas como Rita. Que saibamos reverenciá-la e cultuá-la. 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário