terça-feira, 30 de maio de 2023

O deselegante e presunçoso clamor pela 'aposentadoria forçada' está de volta

 Etarismo seletivo é um termo que se aplica vivamente a uma série de seres desprovidos de bom senso que clamam pela "aposentadoria compulsória" de artistas dos mais variados segmentos sem atentar para exemplos caca vez mais escancarados de longevidade no rock e no blues.

O assunto voltou à tona com a morte de Tina Turner neste mês de maio, aos 83 anos - a causa da morte não foi revelada. Ela havia se retirado dos palcos em 2019, quando chegou os 80 e uma série de problemas de saúde levaram-na ao limite.

De forma inapropriada, o fim da carreira dela foi usado como exemplo de "fim digno", migrando para a uma aposentadoria, ainda que forçada. 

Foram muitos os que vomitaram, no Brasil e no exterior, pregando que a maioria dos artistas "clássicos" já tinham de ter parado "há muito tempo", já que se tornaram "improdutivos" e "irrelevantes", expeliu um jornalista brasileiro ávido por polêmicas.

Curiosamente, o mesmo que louvou nas redes sociais a presença do guitarrista de blues Buddy Guy no Best of Blues and Rock Festival, em São Paulo, um músico de 87 anos de idade.

Fazia tempo que o pessoal da "aposentadoria compulsória" não dava as caras. Essa gente asquerosa e agourenta ficou decepcionada com Ozzy Osbourne, que anunciou que não faria mais shows. 

Houve celebração - "finalmente o cara vai parar porque não dá mais...". Só que aí o cantor de heavy metal reaparece com o álbum "Patient Number 9", um álbum ótimo e recheado de amigos músicos contemporâneos do quilate de Eric Clapton e Jeff Beck...

O "etarismo seletivo" aplicado a uma série de astros do rock não pega em relação a músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, todos octogenários. Os mesmos que reivindicam a aposentadoria de Ozzy vibram com as novas turnês dos ícones da MPB.

É um ranço que extrapola a má vontade e a perseguição, coisa de gente que não suporta ver os Rolling Stones lotando arenas e entregando um show fenomenal à beira dos 80 anos. Buddy Guy e Paul McCartney (81 anos) podem tocar à vontade e são idolatrados, mas os integrantes dos Stones, do Deep Purple, do Kiss, dos Scorpions e de muitos são criticados por estarem "ultrapassados e serem irrelevantes"...

Essas mania de aposentar precocemente grandes artistas de rock não é nova e atinge alguns ápices de vez em quando. Vários críticos "descolados" comemoraram o que chamaram de fim dos dinossauros quando o furacão grunge demoliu as paradas de sucesso e jogou para escanteio muitas bandas importantes de rock clássico e heavy metal.

É fácil buscar no YouTube vídeos de supostos críticos e supostos jornalistas expelindo bobagens como "os Stones tinham de ter parado em 1983...", ou "The Who jamais devera ter voltado em 1989...", ou ainda "o Deep Purple e o Iron Maiden há muito estão fazendo hora extra, faz tempo que são irrelevantes..." 

Para azar desses corvos, o grunge durou menos de cinco anos, quase todas as bandas acabaram naquela mesma década de 1990 e poucas são lembradas. E então os corvos são obrigados a engolir novas turnês de Aerosmith, Jethro Tull, Yes, Iron Maiden...

Querer forçar a aposentadoria de artistas e bandas, aparentemente, é um esporte de roqueiros ressentidos que nunca se conformaram com a onipresença de bandas clássicas desde sempre, como se o sumiço dos "dinossauros" obrigatoriamente abrisse espaço para bandas novas e as fizesse atingir o sucesso.

Quem vê Bruce Dickinson à frente do Iron Maiden á beira dos 65 anos pulando e cantando por duas horas custa a acreditar que ele, com essa idade, ainda pilota aviões, arruma tempo para alguns programas de rádio, para escrever livros e, de vez em quando, praticar esgrima com a seleção inglesa principal da modalidade.

Para os corvos agourentos, Dickinson já deveria estar cuidando dos netos, de pijama o dia inteiro e vendo TV o dia inteiro, como certamente o avô dele teria feito. 

Nada contra tem esse privilégio, mas querer impor esse tipo de vida a artistas que ainda estão muito ativos e oferecem arte de qualidade é lamentável, desrespeitoso e desumano.

É revigorante e estimulante assistir a um show do Uriah Heep, há 53 anos nos palcos, e ver o imenso sorriso do guitarrista Mick Box, 75 anos, tocando e se divertindo ao embarcar em mais uma turnê mundial - e pensar que os críticos "etaristas" não cansam de reclamar de ter de trabalhar sete horas por dia e das dores causadas pelas caminhadas matinais de dois quilômetros, com pelo menos 20 anos menos...

Dá para dizer o mesmo de Steve Harris, baixista e líder do Iron Maiden, que faz questão de mostrar o sorriso imenso quando Rock in Rio ou em qualquer grande festival na Europa aos 67 anos de idade.

A simples aplicação da lógica da aposentadoria esportiva aos astros de rock demonstra claramente uma indigência intelectual monstruosa e uma total falta de empatia. São os mesmos que nunca tiveram coragem de morrer antes de ficarem velhos, como pregava Pete Townshend em "My Generation", clássico de The Who lançado há 58 anos. 

E é sempre bom lembrar que boa parte dessa gente etarista afina quando encontra músicos do rock nacional em entrevistas. Quantos destes não decretaram a morte artística de gente como Marcelo Nova (C anisa de Vênus), Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii), Nando Reis (ex-Titãs), clamando por suas aposentadorias, e aparecem anos depois babando ovo para os mesmos músicos?

É clássica a coluna de jornal que vaticinava o fim do Barão Vermelho com a saída do guitarrista e vocalista Roberto Frejat - e vice versa - para ser desmentida um ano depois com arenas lotadas pelos dois artistas.

Essa gente não aprende que é perigoso agir impulsionada pelo ressentimento. São enormes as chances de passar vergonha. Por mais que admitamos que não é crime alguém torcer e clamar pelo fim da carreira de quem quer que seja - alguns até respeitam isso como opinião -, verbalizar tal coisa e desrespeitoso e de mau gosto.

As recentes apresentações em São Paulo de Caetano Veloso e Chico Buarque provocaram tamanha catarse coletiva que foram muitas as pessoas ás lágrimas na plateia. Dois senhores importantes que fizeram shows excelentes com um repertório de 60 anos recheados de obras-primas? 

Mas os dois não lança músicas relevantes há muito tempo, argumentam os corvos. E daí? Qual o critério de "música relevante"? Partindo do pressuposto que não existe mais parada de sucesso e hits, quem se importa se eles continuam tocando as canções que todo mundo quer ouvir e que foram compostas em 1970?

Esse é o grande desafio que os artistas do século XXI precisam enfrentar: serão relevantes por quanto tempo? Daqui a 40 anos ainda estarão em algum palco tocando músicas que as pessoas queiram ouvir? Conseguirão passar no teste do tempo, como todas as vítimas de "etarismo seletivo" já passaram?

B.B. King, morto em 2015 aos 89 anos - tocou até 12 meses antes de morrer - fez uma grande homenagem a Eric Clapton durante o Crossroads Guitar Festival edição 2007, evento criado pelo guitarrista inglês e realizado a cada três anos nos Estados Unidos.

Em um rápido discurso antes de uma música, King celebrou a existência de um festival como aquele, fruto da persistência e da generosidade de Clapton, mas também louvou a oportunidade de pessoas como ele, músicos calejados então com 82anos, terem a chance de se divertir no palco toando e fazendo boa música. 

A humildade de um monstro como B.B. King celebrando a vida e a música é a melhor resposta possível a etaristas ressentidos e sedentos pela aposentadoria compulsória, mas seletiva.


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