Imagine que o Ira! nunca tivesse existido.
Imagine sua vida sem discos como “Mudança de Comportamento”, “Psicoacústica”, “Vivendo e Não Aprendendo”, e sem a banda que, para muitos – eu me incluo no grupo – é a melhor e mais
instigante entre as grandes do BRock dos anos 80, e a única que entra em sua quinta década de existência lançando discos desafiadores, como ficou provado pelo excelente LP homônimo, lançado em 2020, em plena pandemia.
Mesmo nesse cenário, sem o Ira!, Marcos Valadão, o Nasi, seria um dos nomes mais importantes e talentosos do pop-rock brasileiro dos últimos 40 anos. Um artista com um trabalho eclético e de altíssima qualidade, que nos anos 80 já enxergava a força e importância do hip hop paulistano, produzindo a influente coletânea “Hip Hop Cultura de Rua”, que revelou nomes como Thaíde e DJ Hum, MC Jack e Código 13.
Off-Ira!, Nasi deixou sua marca no pós-punk brasileiro com o grupo Voluntários da Pátria, montou o grupo Nasi e os Irmãos do Blues, que lançou três LPs de celebração à música de raiz norte-americana,
especialmente dos gênios Muddy Waters e Howlin’ Wolf, e recentemente voltou aos tempos de mod com um explosivo disco gravado com a banda Spoilers. Como se não bastasse, tem uma longa carreira solo, que chega agora ao nono disco, “Rocksoulblues”.
“Rocksoulblues” traz oito faixas, a maioria composta ou interpretada por artistas que Nasi sempre admirou, como Zé Rodrix, Tim Maia, Erasmo Carlos, Jerry Lee Lewis e Martinho da Vila, gravadas em
versões surpreendentes e diferentes das originais.
O disco abre com “Blues do Gato Preto”, do próprio Nasi, um bluesão malemolente, cantado com a voz rascante e áspera de Nasi e com um clima de _big band_, animado pelos saxofones de Sax Gordon e pelos teclados de Johnny Boy, colaborador habitual de Nasi em sua carreira
solo.
Depois, Nasi transforma “Devolve Meus LPs”, de Zé Rodrix, num _jump blues_ que parece ter saído de um clube enfumaçado de Kansas City ou Chicago, e tira do chapéu uma versão blues do clássico do
Ira!, “Dias de Luta”, com o guitarrista Igor Prado conjurando Stevie Ray Vaughan e Albert King.
As surpresas continuam com a versão matadora de “Não Te Quero Santa”, composta por Vitor Martins, Sérgio Fayne e Saulo Nunes e gravada originalmente pelo Tremendão em seu clássico LP “Carlos,
Erasmo” (1971). É a primeira de três faixas gravadas no disco pela excelente banda liderada por Marcelo Sussekind e que tem Sergio Melo (bateria), Sergio Morel (guitarra) e Sergio Villarim (teclados), além
do próprio Sussekind no baixo.
Em seguida vem “Não Vá Me Machucar”, adaptação – com letra de Nasi - de “Rollin’ and Tumblin’”, clássico blues norte-americano gravado em diferentes versões por vários bluesmen dos anos 1920 e mais conhecido pela versão eternizada por Robert Johnson em 1936, com o título de “If I Had Possession Over Judgment Day”. Aqui, a canção ganha uma roupagem moderna e dançante, com as participações do produtor Apollo Nove e os “scratches” de DJ Hum. É a conexão blues-hip hop-eletrônico.
E quem mais, senão Nasi, poderia transformar um Country Western em o samba “O Caveira”, famoso na voz de Martinho da Vila? A nova versão ganha companhia luxuosa da cantora Nanda Moura, que divide os vocais com Nasi nesse dueto divertido. O cantor depois solta a voz e presta tributo a um de seus grandes ídolos, Tim Maia, na suingada “O Que Você Quer Apostar?”, abrilhantada por um solo de guitarra memorável de Sergio Morel.
“Rocksoulblues” encerra com “Rosa Selvagem”, versão de “Ramblin’ Rose”, originalmente um country-blues gravado em 1962 por Jerry Lee Lewis e transformado, em 1969, num míssil proto-punk pela
banda MC5 em seu LP de estreia, o clássico “Kick out the Jams”. A versão de Nasi emula o MC5 e é o encerramento perfeito para um disco tão festivo.
“Rocksoulblues” não é um simples “disco de covers”, daqueles em que o artista se limita a regravar músicas que gosta. É um LP de intérprete, em que Nasi transforma e dá a sua cara a músicas que o
influenciaram. É um disco eclético e surpreendente. Um disco com a cara do Nasi.
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