A visita do Van Halen em janeiro tinha sido apenas um aperitivo, por mais que todas as apresentações no Brasil, em ginásios e casas de shows, tenham lotado. O "maior evento da Terra" estava programado para o segundo semestre, e prometia abarrotar um estádio gigante como o Morumbi, em São Paulo, cujo recorde de público era um dos jogos da final do Campeonato paulista de 1977, entre Corinthians e Ponte Preta - mais de 139 mil pagantes.
E então seríamos apresentados ao Kiss, que povoava o imaginário de fãs e detratores, movendo céus e infernos - literalmente - quando os shows pelo Brasil foram anunciados naquele ano mágico de 1983.
O Brasil estava redescobrindo o Black Sabbath, que naquela época já não tinha mais Dio nos vocais mas, surpreendentemente, Ian Gillan, a voz do Deep Purple. e começava a encontrar nas lojas os álbuns do Iron Maiden e do Saxon, além das reedições mais do que bem-vindas dos discos do Judas Priest.
A chegada do Kiss era um evento, da mesma forma que hoje grandes shows de grandes nomes do rock tem grande parte de seu público de gente sem relação com o rock, como se fosse uma grande balada. A diferença é que a banda dos mascarados americanos causava genuína curiosidade: eram realmente malignos e diabólicos? Todo mundo queria conferir de perto.
A turnê pela América do Sul ganhou forte apelo porque seria a última com os músicos usando as famosas máscaras que tanto fizeram a sua fama. Era o suporte do LP "Creatures of the Night", de 1982, um bom disco, mas longe do auge da banda, na década anterior, por mais que tivesse grandes hits, como "I Love It Loud" e a faixa-título.
A banda cresceu muito rápido a partir de 1975 depois de anos ralando muito e ganhando quase nada. Com álbuns preciosos como "Destroyer" e "Love Gun", o Kiss se tornou ma potência do rock pesado apoiado na teatralidade absorvida de Alice Cooper e da veia pop chupada dos Beatles, entre outros.
A boa fase durou enquanto a criatividade não foi afetada pelas drogas e pelo excesso de dinheiro entrando. Em 1978, brigando como nunca, os quatro integrantes inventaram de cada um lançar, quase ao mesmo tempo, um álbum solo com patrocínio e incentivo do empresariamento da banda. Foi o começo do afastamento e do fim da química - e, consequentemente, um período de decadência.
Com as saídas do guitarrista Ace Frehley e do baterista Peter Criss o Kiss ficou desfigurado e perdeu a aura de superbanda que muitos garotos da época admiravam e sonhavam. Era preciso se reinventar e o fim do período mascarado foi a jogada de marketing encontrada para recuperar o prestigio da banda.
A pesada campanha de marketing que sustentou a vinda do Kiss foi uma das que mais deu certo no país até então. De uma banda de rock até então não muito conhecida fora dos círculos roqueiros, o Kiss foi retratado como um grupo de superastros como se estivessem no auge.
As lendas que os cercavam, de que eram satanistas e de que esmagavam pintinhos no palco com suas bolsas imensas e pesadas saíram do esquema folclórico e começaram a ser discutidos "seriamente" pelo mundo conservador e tosco brasileiro, "preocupado com a influência diabólica sobre a juventude".
A coisa chegou a tal ponto que evangélicos e católicos se juntaram em campanhas contra aas apresentações. Esses seres repugnantes não tiveram vergonha de ir para a frente do Morumbi, em São Paulo, para tentar "desestimular" os jovens a entrar no estádio no dia do show.
A comoção foi tanta que chamou a atenção de várias emissoras de TV e jornais, que começaram a usar, pejorativamente, o termo "metaleiro". Ninguém se importou com isso.
Entretanto, algumas passagens entraram para o anedotário da bestialogia nacional. O programa Flávio Cavalcanti, que era exibido em horário nobre no SBT, mostrou um debate nos moldes preconceituosos do registrados em resenha da Folha de S. Paulo, como bem lembrou o site Gaveta de Bagunças (https://gavetadebaguncas.com.br/).
O apresentador e seus convidados acusaram o grupo de sacrificar animais no palco além de prometer que os americanos nunca iriam se apresentar no Brasil. Em 1985, o mesmo programa levou ao palco a banda cover Kiss Double como uma de suas atrações.
Os shows foram ótimos, em que pese algumas falhas técnicas no som em São Paulo. Lavou a alma de quem sentia falta de um evento monumental como tinha sido a passagem do Queen pelo país dois anos antes.
Há quem diga que o Kiss despertou no empresário Roberto Medina - ele nega - a atenção para os megashows de rock e seu imenso potencial, que menos de dois anos depois se materializaria no primeiro Rock in Rio.
Para muitos aficionados, foi o primeiro contato, genuíno, com o rock pesado, por mais que o Kiss nunca tenha passado de uma banda de hard rock - e das melhores. "I Love It Loud", com seus tambores marciais ensurdecedores e seus gritos de guerra, eram assustadores para os pais de jovens que ficavam hipnotizados com o som potente. Era o chamado para a guerra. E a multidão atendeu ao chamado.
A turnê comemorava o décimo aniversário da banda americana e em nosso país os shows foram realizados no Maracanã em 18 de junho, Mineirão no dia 23 de junho e Morumbi no dia 25 de junho e nos shows do Rio de Janeiro e Belo Horizonte a banda de abertura foi o Herva Doce que estava estourada nas rádios do país com dois sucessos.
Por qualquer ponto de vista que se adote, é inquestionável que a visita do Kiss foi marcante e histórica, a ponto de colocar definitivamente o Brasil no mapa dos megashows, o que o Queen, intrigantemente, não conseguiu - não de imediato.
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