sábado, 25 de fevereiro de 2023

O rock consegue se desvencilhar da desumanidade

 Em um mundo onde as coisas eram menos complicadas, milênios atrás, alguns "ditadores" da moda, algo como os influencers da época, costumavam dizer que o rock não combinava com a praia, mesmo com uma banda dizendo que iria invadir a sua - um tempo em que Ultraje a Rigor parecia uma banda legal.

De norte a sul do litoral paulista, não se ouvia rock na praia, da mesma forma que hoje. Ou era a mais chata MPB do universo ou aquele início de pagode igualmente insuportável ou a incipiente axé music. Era difícil frequentar a praia de paulista nos nem tão dourados fins dos anos 80... Só tomando muitas, como diria o recém-falecido blueseiro Paulo Meyer...

E então surgiu a notícia de que, finalmente, haveria um lugar para ouvir o nosso rock de cada verão em uma casa era um misto de bar de dia e casa noturna à .noite, com shows ao vivo e decoração bacana. Autointintulava-se a "única casas de rock do litoral norte". Provavelmente era. E só poderia ser na descolada e instigante praia de Maresias, a mais quente de São Sebastião.

Não me lembro do nome da casa. Durou até mais tempo do que o previsto, mas era um oásis de paz de tranquilidade naquela praia de elite de uma cidade que parecia espaçada demais - e despedaçada, sem alma e sem aquele charme de balneário.

Para quem mal conseguia chegar à região central de São Sebastião, onde a maioria dos amigos tinha um parente que tinha casa de veraneio simples, mas confortável, era uma aventura encarar 30 quilômetros de estrada sinuosa e lenta para curtir algum rock na praia. E tudo piorava na volta, com muitas cervejas a mais, e à noite... Santa irresponsabilidade total...

Houve um boom de casas noturna, restaurantes chiques e bares da moda entre 1990 e 2000 na praia de Maresias. Era o ponto de encontro da juventude endinheirada e da aspirante a endinheirada da época. Toda a elite das cidades do Vale do Paraíba e a mis chique das chiques de São Paulo frequentava ali.

O bar de rock (não lembro de jeito nenhum o nome) era apenas uma curiosidade exótica para um mundo que tinha descoberto a música eletrônica, mas que adorava mesmo o pior dos pagodes e a já onipresente música sertaneja da pior qualidade.

Quase sempre, no verão, tinha uma banda de São Paulo, cover ou não, tocando ali. Diziam que o cachê era honesto e decente, além de alguma alimentação e hospedagem nem tão decente assim para quem não queria enfrentar quatro horas de viagem na madrugada a São Paulo.

A exclusão social/apartheid econômico já era muito evidente naquela época, embora não tão descarado porque a população local era menor. A estrada Rio-Santos (BR-101/SP-55) era a linha divisória da orla do ar chique e do morro paupérrimo e sem a presença de Estado. 

Houve a catástrofe de 1966 em Caraguatatuba, com mais de 300 mortos por causa das chuvas intensas e deslizamentos, mas fazia muito tempo que tinha ocorrido - e ninguém queria lembrar. Ou seja, as condições para a tragédia do Carnaval sempre esteve à espreita em quase todas as praias do litoral norte paulista.

São quase 30 anos de descaso estatal. especulação imobiliária e ganância profunda por parte de empresários espertalhões e grileiros de terra pública, que empurraram pobres para aas encostas dos morros - os mesmos serviçais que "servem" aos ricos da orla praia.

São os mesmos ricos que barram a construção de condomínios populares na orla alegando que não há "infraestrutura" e que "descaracterizam (desvalorizam imóveis) as características urbanísticas do local".  

Depois da tragédia do Carnaval que matou mais 60 pessoas em várias praias de São Sebastião, houve "cidadãos de bem" de um condomínio de luxo que tentou agredir jornalistas que cobriam a tragédia, chamando-os de "comunistas". 

Essa mesma gente estava indo à praia em meio à calamidade total para aproveitar uma nesga de sol, ao som de pagode e sertanejo, em total falta de empatia com a população mais pobre, mas em sincronia com a desumanidade característica de uma elite nojenta e insensível, adoradora de mitos que tentaram demolir a democracia e que tem ojeriza a qualquer noção de redução da desigualdade social.

Pensando bem, que bom o rock ficou e fora dessa e não foi consumido em larga escala no litoral norte nestes anos todos de descalabro, incompetência e desumanidade. é uma bênção não ter servido de trilha sonora para a destruição social e debilidade moral de um povo ganancioso e segregacionista.

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